No Theatro Municipal, filme sobre Joãosinho Trinta mostra como o carnavalesco fez o caldeirão do samba ferver


Estrelado por Matheus Nachtergaele, longa-metragem mostra a difícil trajetória até o primeiro desfile da festa de Momo assinado por João Jorge Trinta

*Por João Ker

Joaosinho Trinta (1933-2011), um dos maiores e mais revolucionários carnavalescos que já agraciaram 0 carnaval carioca, foi homenageado nesta quarta-feira (1/9) no triunfante local de origem de sua carreira artística no Rio de Janeiro: o palco do Theatro Municipal. Através do filme “Trinta”, dirigido por Paulo Machline e estrelado pelo sempre ótimo Matheus Nachtergaele (impecável!), o Festival do Rio apresentou o filme com destaque absoluto, revelando a trajetória do maranhense que largou o balé clássico para espalhar o luxo e o lixo pelas avenidas do carnaval carioca. Conhecedor profundo daquilo que as massas amam, ele se eternizou – além do seu trabalho – pela máxima maior (parece redundante, mas aqui cabe): “Quem gosta de miséria é intelectual. O povo gosta é de luxo!”

Essa não é a primeira produção que Paulo realiza sobre a vida de João Jorge Trinta. Em 2009, o diretor indicado ao Oscar de ‘Melhor Curta- Metragem’ por “Uma História de Futebol” (2001), já havia lançado o documentário “A Raça Síntese de Joãosinho Trinta” e conta com exclusividade para HT como um ajudou o outro a nascer: “Eu chamo o documentário de ‘acidental’, porque ele foi a pesquisa para que eu pudesse fazer o filme. O “Trinta” só existe, porque eu deixei de fora a história que eu acreditava ter capacidade para se transformar em um longa-metragem. Então, eu optei por contar uma história que quase ninguém conhecia: a transição que o Joãosinho fez do mundo erudito para o mundo popular, do Theatro Municipal para o barracão da escola de samba”. Durante o filme, é possível enxergar como a visão do carnavalesco era despida de limites, o que lhe rendia momentos memoráveis que até hoje são vistos como marcos na história da festa brasileira mais assistida no mundo. O diretor comenta sobre essa importância fundamental do artista: “Ele transformou o Carnaval em um evento midiático, pegou o que estava no chão e jogou para cima. Foi o primeiro a fazer uma alegoria de 12m de comprimento. O Carnaval brasileiro só foi para o mundo após o Joãosinho Trinta”.

Paulo Machline durante a estreia de "Trinta" (Foto: Ricardo Gama | Divulgação)

Paulo Machline durante a estreia de “Trinta” (Foto: Ricardo Gama | Divulgação)

A trama aborda esse ponto específico da carreira do carnavalesco, quando assumiu o posto pela G.R.E.S. Acadêmicos da Salgueiro, mostrando principalmente a resistência que ele sofreu pela homossexualidade, por ter uma mente criativa inicialmente encarada como delirante e ser o substituto do idolatrado Fernando Pamplona, representado na tela pelo competente Paulo Tiefenthaler, mais conhecido pelo seu programa “Larica Total”, no Canal Brasil. Uma das relutâncias mais veementes que Joãosinho encontra em seu caminho é a de Tião, chefe do barracão da escola de samba interpretado por Milhem Cortaz. Por sinal o ator, que passou 14 anos dentro da GRCSES Vai-Vai, conta que sempre teve Joãosinho Trinta como uma referência de ousadia, fantasia e raça dentro do Carnaval. “Havia outros, mas ele era uma lenda”. E, mesmo com todo o trabalho árduo e rigor com seus desfiles, Milhem acredita que a mensagem do carnavalesco era bem clara: “Divirtam-se. Coloquem o profissionalismo em fazer um ótimo carnaval, mas quando ele estiver na Avenida, esqueça isso e divirta-se. É para isso que serve o Carnaval”.

Mariana Nunes, uma ótima revelação do elenco e responsável por dar vida a Isabel, a grande musa cheia de vontades do desfile, admite que já conhecia toda a mística em volta do carnavalesco mas ficou surpresa ao se aprofundar na história do maranhense e toda a sua luta por aceitação. “Quando a gente já conhece a pessoa famosa, não imaginamos o que ela passou e, no caso dele, essa rejeição quando chegou ao Salgueiro e ao carnaval me chocou”, confessa. Apesar de amar a “festa da carne” e acompanhar tudo pela TV, a brasiliense conta que nunca desfilou para uma escola de samba, há não ser no filme, mas que morre de vontade e vê claramente uma parte do legado de Joãosinho que ecoa até hoje: “Ele reinventou o carnaval. Não teve medo de trazer coisas e temas novos, muito também pela escola que ele teve com o Fernando Pamplona, o qual veio da Belas Artes e trabalhava em um Carnaval erudito. Nessa pegada do Pamplona, que era encantado pelo folclore e pela cultura brasileira, os dois se contaminaram e tornaram o carnaval mais brasileiro, tanto de forma sofisticada como simples. Foi o Joãosinho quem trouxe elementos baratos para a Avenida, mas que ao mesmo tempo faziam vista no resultado final”, comenta.

Elenco de "Trinta" Paulo Machline durante a estreia de "Trinta" (Foto: Ricardo Gama | Divulgação)

Elenco de “Trinta” Paulo Machline durante a estreia de “Trinta” (Foto: Ricardo Gama | Divulgação)

O grande astro do filme, Matheus Nachtergaele, que não continha a ansiedade e empolgação com a estreia do trabalho, conta que sempre foi um admirador de Joãosinho, conheceu muito o carnavalesco e se sentiu honrado com a escolha para o papel. “Ele é uma referência. O carnaval do João Trinta sempre foi uma ópera a céu aberto. Muito bem elaborado e com uma mitologia muito especial, repleto de inovações incríveis”, conta, dizendo que, para entrar na pele do personagem, resolveu fazer quatro meses de balé. “Fiz para encarar as cenas de dança, mas também para adquirir uma certa postura e uma certa maneira de encarar o trabalho. Como balé é muito difícil, você precisa ser metódico e eu enxerguei isso como parte do caráter dele. Eu não sabia que ela já havia sido bailarino, foi algo que me surpreendeu muito. Assim como a maneira com que ele entrou no Carnaval, o que foi quase um acaso.”

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Esse acaso é o que permeia todo o roteiro, o qual engloba apenas a chegada de João Jorge ao palco do Theatro Municipal e a luta para colocar seu primeiro desfile pelo Salgueiro na Avenida. A direção é emocionante, sem forçar a barra e exagerar no drama, enquanto figurinos e atuações aparecem como os grandes destaques da história, tanto na construção do universo carnavalesco quanto na caracterização das décadas de 1960 e 1970. No elenco, além dos já citados acima, merecem destaque Paolla Oliveira e Fabrício Boliveira. Ela, através de um personagem mais contido como Zeni Pamplona, prova que é algo além de um rostinho bonito em frente à câmera; enquanto ele, vivendo Calça Larga, o guardião do barracão, mostra perfeito tempo cômico, confere dureza ao personagem, ao mesmo tempo em que tira de letra as cenas mais sensíveis ou emocionais. Como Trinta, Matheus aparece mais uma vez em metamorfose sensacional, adquirindo postura, tom de voz e até trejeitos típicos do carnavalesco, com um grande ápice na cena em que ele dá um chilique em meio à confecção das fantasias, desatando em um frenético disparo de palavrões aos sete ventos.

Direção e fotografia, apesar de contidas e sem muitas firulas artísticas, conseguem casar-se muito bem com o roteiro com o objetivo de passar o desespero que uma comissão carnavalesca sofre com a chegada da data final. A pressão que Joãosinho sente em colocar as alegorias na Avenida é completamente transmitida à medida que os dias se passam no filme e o caos ordenado do artista também é mostrado com eficiência. Sua sexualidade também e discutida no longa-metragem, mais em função da homofobia e rejeição que sofreu tanto da família quanto dos colegas de trabalho que, após verem o resultado final das criações, acabam por relevar o fato de João ser gay. E um detalhe que fez toda a diferença foi a opção de utilizar imagens de arquivo apenas no final da produção para mostrar o que viria a ser um grande marco no carnaval popular.

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Antes da exibição, Paulo Machline dedicou o filme a Pamplona e Trinta, o que parece mais do que justo. Matheus, emocionado, leu uma carta de autoria própria que escreveu para Joãosinho, onde estava escrito mais ou menos isso: “A única revolução possível é através da alegria. […] Seus desfiles eram partos suados, doídos e milagrosamente felizes. O resto de brilho na Avenida era a placenta de seus partos. […] Fiz esse filme como uma homenagem, como quem faz uma oração. […] Dizem que os aplausos são para chamar a atenção dos deuses, então…”. A frase no ar foi a deixa para todos os presentes aplaudirem dois deuses do carnaval nacional. E, assim, Joãosinho conseguiu levar seu carnaval ao palco do Theatro Municipal, consagrando e fundindo o melhor de seus dois mundos.

Trailer oficial