“Sniper americano”: visão de Eastwood sobre herói bom de tiro se aproxima da banalidade do mal de Hannah Arendt


Sem falsos moralismos, o diretor se mostra cru nesse exercício cinematográfico em que revela o atirador de elite com alguém que simplesmente cumpre ordens, mesmo que sejam para matar

Diretor afeito a uma forma tradicional de fazer cinema que beira a Holywood dos anos 1940, Clint Eastwood brilha mais uma vez em “Sniper Americano” (American Sniper, Warner Bros e Village Roadshow Pictures, 2014), filme que narra a trajetória de Chris Kyle (1974-2013) – atirador de elite das forças especiais da marinha norte-americana que participou das ofensivas na Guerra do Iraque e que se tornou uma lenda por ter matado cerca de 160 pessoas –, a partir do livro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History“, escrito pelo próprio militar a seis mãos, junto com Scott McEwen e Jim DeFelice.

Estrelado por Bradley Cooper que, para fazer o papel, comeu oito mil calorias por dia e treinou quatro horas diárias para chegar ao physique du rôle do personagem, o longa narra o quanto uma visão simplista pode levar a lugar nenhum, partindo do início, quando o rapaz do Texas que queria ser peão de rodeio decide se alistar, a partir das ações terroristas do 11 de setembro. Sua visão de heroísmo – tão pueril quanto a de um caubói que massacra índios para consolidar o território estadounidense antes do surgimento de tempos politicamente corretos – não é questionada, mas mostrada de forma crua, sobretudo quando as escolhas do soldado se revelam tão obtusas quanto as de alguém que simplesmente obedece ordens e pronto.

Eastwood com Cooper no set de filmagem: no fundo, uma associação entre a visão obtusa e equivocada do persongem e a própria leitura maniqueísta do caubói (Foto: Divulgação)

Eastwood com Cooper no set de filmagem: no fundo, uma associação entre a visão obtusa e equivocada do persongem e a própria leitura maniqueísta do caubói (Foto: Divulgação)

Mito que começou sua carreira como ator de bangue-bangue italiano, o diretor sabe como ninguém que os arquétipos do herói e do vilão, na vida real, se misturam e que existem muito mais tons de cinza do que romances açucarados que fingem ser sado-masô. Pelo contrário, a vida real nunca é em preto & branco, coisa que só é possível na arte, no teatro, na literatura, no cinema. Reduzido a mero executor de ordens e embrutecido pelo ambiente que o cerca, o suposto herói não questiona suas ações, apenas cumpre com competência as missões para as quais foi designado, doa a quem doer e, em muito momentos, ele parece se sentir gente apenas porque conseguiu descobrir ali mesmo, naquele habitat hostil, uma vocação profissional, ainda que esta fosse a de tirar vidas.

Quando embarca nessa leitura de Chris Kyle, Eastwood revela não acatar preconceito algum, muito menos o patrulhamento ideológico imposto hoje em dia pelos desocupados de plantão nas mídias sociais, narrando e exibindo feridas com coragem. A beleza do longa está justamente aí: nesse relato quase científico sobre um objeto de estudo, sem qualquer falso moralismo. E, claro, o que se vê é chocante.

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De certa forma, a maneira como o personagem é desenterrado da cova para ganhar vida na tela é semanticamente similar aos motivos que levaram a filósofa e escritora Hannah Arendt (1906-1975) a compilar sobre a banalidade do mal em “Eichmann em Jerusalém”, livro que lançou em 1963 e que reúne os cinco artigos que escreveu para  a The New Yorker sobre o julgamento de Adolf Eichmann, no qual se abstém de considerar o criminoso de guerra um demônio nazista para descrevê-lo como um mero burocrata que cumpria tarefas, “alguém terrível e horrivelmente normal”. Sim, sua teoria sobre a maldade que pode se inserir no ato banal é o contraponto ao maniqueísmo óbvio que reduz tudo apenas a bom e  mal, e é dessa rica fonte que o diretor bebe na hora de comandar “Sniper Americano”. Imperdível.

Trailer oficial (Divulgação)