Com texto fraquinho e direção de arte caprichada, Jennifer Aniston e Tim Robbins tentam reviver o clima seventies em comédia requentada


“Sem direito a resgate” se perde num roteiro caído com pretensões a humor negro, apesar do elenco carismático e da primorosa reconstituição de época que homenageia os carrões, cabelões e bigodões anos 1970

*Por Flávio Di Cola

Se você for um daqueles que se acaba de emoção num brechó quando encontra resquícios vintage da era disco como – por exemplo – uma legítima camisa de voil com gola gaivota, ou um suéter de plush cor ferrugem, ou mesmo um colete de tricô bem justinho, “Sem direito a resgate” (Life of crime, de Daniel Schechter, Lionsgate, 2013) é o seu filme. E se o seu objetivo for passar quase duas horas na companhia de atores competentes e em boa forma cômica como Jennifer Aniston, Tim Robbins, Yasiin Bey, John Hawkes ou Will Forte, pode comprar tranquilamente o seu ingresso de cinema.


Trailer oficial de “Sem direito a resgate” (Divulgação)

Mas se você espera uma comédia realmente engraçada, com ritmo ágil e que garanta algumas risadas, é melhor baixar (bastante) as suas expectativas. Até por que a divertida e rendosa chanchada “Família do barulho” (We’re the Millers, 2013, dirigido por Rawson Marshall Thurber) foi o filme que Jennifer Aniston estrelou imediatamente antes de se arriscar como protagonista e produtora desta morna adaptação de mais uma novela de sucesso do romancista (e roteirista) de westerns, policiais e thrillers Elmore Leonard (1925-2013) – “The Smitch”, lançada em 1978. Aliás, Elmore também participou do início deste projeto como produtor executivo, mas morreu antes da sua finalização. O resultado equivocado se refletiu nas bilheterias: enquanto “Família do barulho” já ultrapassou os 125 milhões de dólares de renda, “Sem direito a resgate” não alcançou nem 1,5 milhão durante o lançamento em pleno verão americano em que as comédias leves e descompromissadas tradicionalmente abocanham boas arrecadações, mesmo com a visibilidade alcançada por ter sido escolhida para encerrar o último Festival de Toronto.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Fotos (Divulgação)

O curioso é que “Sem direito a resgate” parte de uma premissa que já deu muito certo no passado e que levanta uma questão bastante provocante (para não dizer tentadora) para muitos casais cujos casamentos já falidos estão à beira do divórcio: se o seu marido ou mulher fosse sequestrado(a) e se você já tivesse um(a) belo(a) amante esperando na garçonnière, você – ainda assim – pagaria o resgate pedido? Bem, não precisa responder, mas só lembrar como essa situação já gerou filmes hilários como “Por favor, matem a minha mulher” (Ruthless people, 1986, Touchstone, dirigido por Jim Abrahams, Jerry e David Zucker) com os impagáveis Danny DeVito e Bette Midler, ou o seu desdobramento mercadológico “Jogue mamãe no trem” (Throw momma from the train, Orion Pictures, 1987), dirigido e protagonizado pelo próprio Devito, além de Billy Cristal.

Este slideshow necessita de JavaScript.


Trecho de “Por favor, matem a minha mulher” (Reprodução)

Desde sucessos do mais remoto passado, como as tragédias gregas ou as peças de William Shakespeare, passando por clássicos do cinema como “Suspeita” (Suspicion, 1941, RKO) de Alfred Hitchcock, com Cary Grant e Joan Fontaine; “À meia luz” (Gaslight, 1944, MGM), de George Cukor, com Ingrid Bergman e Charles Boyer; ou pelo paradigma de todos os filmes noirs“Pacto de sangue” (Double Idemnity, 1944, Paramount), de Billy Wilder, com Barbara Stanwyck e Fred MacMurray –, até chegarmos a mais deslavada comédia negra italiana como “Parente é serpente” (Parenti serpenti, 1992) de Mario Monicelli – todos esses títulos já provaram que o público se esbalda com esse filão macabro em que esposos e parentes intragáveis tentam exterminar uns aos outros.

Este slideshow necessita de JavaScript.


A famosa cena do copo de leite supostamente envenenado de “Suspeita”: depois deste filme, muitas esposas passaram a pensar duas vezes antes de aceitar qualquer bebida preparada pelo maridão… (Reprodução) 

Em “Sem direito a resgate” temos a fórmula completa: o casal formado por um empresário trambiqueiro do ramo imobiliário que tinge o cabelo de acaju (Robbins, num papel inicialmente previsto para Dennis Quaid) e pela perua desavisada com look de loura de condomínio (Aniston), a amante periguete e espertinha (Isla Fisher), os sequestradores meio atrapalhados (Bey e Hawkes) e um conquistador barato (Forte). Para arrematar a galeria de tipos ridículos, há ainda um comparsa debilóide que é fã de Adolf Hitler e digno representante do white trash americano. Mesmo assim, o filme não engrena: as boas interpretações, as situações potencialmente tensas e engraçadas, as viradas e o final irônico, tudo se perde no meio de um roteiro mal ajambrado com muitos tempos mortos.

Este slideshow necessita de JavaScript.

O forte de “Sem direito a resgate” acaba sendo mesmo a direção de arte e os figurinos que captam perfeitamente e com um leve tom de ironia a Detroit afluente do final dos anos 1970, quando era a “capital do automóvel” e já estava fortemente abalada pela primeira grande crise do petróleo (1973). Foi quando a maior cidade do estado de Michigan tentou dinamizar-se economicamente através de uma discutível renovação urbana marcada por projetos cafonas e megalomaníacos. O diretor de arte israelense Inbal Weinberg conseguiu recriar essa atmosfera em externas bem longe de Detroit, no estado de Connecticut.  Já o trabalho de reconstituição da figurinista mexicana Anna Terrazas – em Hollywood desde 2011 – é absolutamente impecável e um espetáculo a parte, mas sem exageros. A trilha sonora, a cargo dos The Newton Brothers, discípulos do oscarizado Hans Zimmer, também recriou com sutileza as sonoridades tão típicas dos seriados policiais ou de ação dessa década tão marcada pelo trabalho de Isaac Hayes de “Shaft” (Idem, 1971, MGM) dirigido por Gordon Parks e estrelado por Richard Roundtree. Enfim, talvez “Sem direito a resgate” inspire os antigos e as antigas fãs de Tom Selleck e Farrah Fawcett a voltar com os bigodões e o cabelão liso modelado. Já é alguma contribuição.

"Shaft": boa dose da estética setentista visto no clássico blaxploitation comparece agora no longa de Jennifer Aniston (Foto: Reprodução)

“Shaft”: boa dose da estética setentista visto no clássico blaxploitation comparece agora no longa de Jennifer Aniston (Foto: Reprodução)


Trecho de Shaft (Reprodução)

*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria