Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “Shopping and fucking”. “Ótimo conjunto de interpretações”


O texto escrito há vinte anos é um símbolo da juventude pós-yuppie, essa mundialmente marcada pelas perdas da AIDS seja por drogas, seja por sexo sem proteção

*Por Rodrigo Monteiro

Com ótimo conjunto de atuações, “Shopping and fucking”, do inglês Mark Ravenhill, é o primeiro espetáculo dirigido por Jopa Moraes. O texto escrito há vinte anos é um símbolo da juventude pós-yuppie, essa mundialmente marcada pelas perdas da AIDS seja por drogas, seja por sexo sem proteção. Na peça, três jovens correm atrás da sobrevivência por entre os desafios da comida congelada e de relações mais ainda. O melhor da produção, que a faz se destacar na programação teatral da cidade, são as interpretações de Felipe Bustamante, Rebecca Leão, Felipe Ávlis, Daniel Braga e do diretor. Por elas, vale a pena assistir à montagem que fica em cartaz, até 4 de dezembro, no Espaço da Cia. Armazém na Fundição Progresso, na Lapa, zona central do Rio de Janeiro.

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Quando a peça começa, Mark (Felipe Bustamante) está bastante debilitado principalmente pelo consumo de heroína. Por isso, ele sai de casa, deixando seus amigos Lulu (Rebecca Leão) e Robbie (Felipe Ávlis) com ainda mais dificuldades de se manterem sozinhos. Em busca de um emprego como atriz, Lulu acaba conhecendo Brian (Daniel Braga), que a coloca para vender ecstasy, uma droga comercializada clandestinamente em forma de pílulas coloridas. O grande conflito da narrativa começa quando, em uma festa, Robbie distribui a “bala” entre seus amigos, causando uma dívida fenomenal com o tráfico. Brian dá a eles alguns dias para juntarem dinheiro para pagar o que devem e nisso consiste a aventura principal de “Shopping and fucking”.

No outro lado da narrativa, Mark (mesmo nome do autor) paga Gary (Jopa Moraes) por prazer sexual, mas, de algum modo, eles acabam se envolvendo emocionalmente. Isso dá a ver uma trama paralela. E as duas histórias acabam por se encontrar. Gary tem 14 anos e busca por uma relação sob determinados modos agressiva, o que talvez vá em linha oposta aos demais personagens no ponto mais interessante da abordagem. Nesse contexto, Ravenhill argumenta sobre uma visão negativa do mundo na contemporaneidade, caracterizando-o como um lugar onde a artificialidade nas relações é, antes de outra coisa, uma das consequências do consumismo exacerbado.

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“Shopping and fucking” tem sido muito elogiado em várias cidades do mundo nas últimas duas décadas desde sua estreia. No entanto, sob alguns aspectos, já é possível sentir hoje que o texto envelheceu (não tanto como “Closer”, de Patrick Marber, escrito um ano depois). O modo como o mundo se modificou nesse período faz ver essa dramaturgia, em vários momentos, como mais um contexto para quadros um tanto quanto agressivos do que propriamente uma narrativa. As cenas são longas, as falas extensas e as curvas pouco claras. O modo como a encenação se dá nem sempre ajuda também. Aqui vale dizer, no entanto, que essa reflexão é um retrato importante de uma época que ainda não passou. Em 1999, dirigida por Marco Ricca, a peça ganhou uma montagem célebre no Brasil. Oito anos depois, houve outra dirigida por Fernando Guerreiro.

A versão de Jopa Moraes tem o mérito e o desvalor de centrar todo o espetáculo no trabalho dos atores. O problema disso é que a montagem se apresenta um tanto quanto desprovida de imagens que oxigenariam a narrativa e dariam mais fluência para o todo. O bom é que os intérpretes apresentam ótimo trabalho nessa produção, esforçando-se para segurar o ritmo cuja manutenção se dá com suor devido a várias questões de sua ordem.

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O piso e o fundo branco, por exemplo, assim como a proximidade do público em relação ao palco, eliminam algumas chances da peça de criar a ilusão. Por causa disso, a defesa das cenas (a injeção de heroína, por exemplo) enche os atores de uma responsabilidade que eles, embora esforçados, nem sempre dão conta. Essa opção, entre outras coisas, torna o discurso árduo de ser defendido porque a narrativa fica consequentemente muito racional e pouco clara. Por outro lado, quando o efeito é conseguido, reconhecem-se os motivos para elogiar a interpretação.

Felipe Bustamante (Mark), Rebecca Leão (Lulu) e Felipe Ávlis (Robbie) exibem destacável entrosamento entre si. O jeito como eles dizem o texto valoriza as palavras, chamando a atenção para o aspecto realista do discurso na ótima tradução das falas, essa assinada por Laerte Mello. Além disso, seus corpos, através das expressões faciais e dos gestos, surgem plenos no processo de construção de cada quadro, o que é um feito ainda mais nobre na arriscada apresentação em palco aberto de semi-arena e sem cenário. Daniel Braga e Jopa Moraes, cujos personagens são mais periféricos, também parecem aproveitar bem as possibilidades.

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Como já apontado anteriormente, a cenografia de Ricardo Martins expõe negativamente o texto de Ravenhill, trazendo mais desafios para o ritmo da encenação. A luz de Paulo Moraes, coerente com o cenário, acaba por agir em mesma direção. O figurino de César Marquez se esforça em aproximar “Shopping and fucking” de 2016, aproveitando a moda atual de valorizar os anos 90. No entanto, essa concepção também age no sentido de limpar a sujeira sobre a qual Mark Ravenhill estruturou sua história e seus personagens. A trilha sonora de Miguel Travassos surge, ao lado dos atores, no esforço homérico de melhorar o desenvolvimento, obtendo sucesso em algumas passagens.

Em época de redes sociais e de “endireitamento” do mundo, a questão de uma juventude mergulhada nas drogas e no sexo sem compromisso já não tem o mesmo lugar na pauta que talvez tinha na época em que “Shopping and fucking” foi escrito. Embora essas questões continuem válidas, há um quê de museológico nessa abordagem que, entre outros méritos, vale como ponto de reflexão sobre o hoje. Essa montagem, com um vibrante trabalho de interpretação, tem seu ponto mais positivo no elenco. E esse, sem dúvida, é um ótimo motivo para assistir-lhe. Vida longa!

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Ficha técnica:

Dramaturgia: Mark Ravenhill | Direção: Jopa Moraes | Tradução: Laerte Mello | Elenco: Felipe Bustamante, Rebecca Leão, Felipe Ávlis, Jopa Moraes e Daniel Braga | Iluminação: Paulo de Moraes | Cenografa: Ricardo Martins | Figurinos: César Marquez | Gravação de vídeo e fotografas: Nityam | Videografsmos: Tiago Sacramento | Trilha Sonora: Miguel Travassos | Projeto gráfco: Jopa Moraes | Operação de luz, som e projeção: Joshua Moraes | Bilheteria: Amanda Candido | Produção: Jopa Moraes

Serviço
Onde: Espaço Armazém – Fundição Progresso
Quando: Dias 1, 2, 3 e 4 de Dezembro. Às 20 horas
Quanto: R$20

*Rodrigo Monteiro é nosso crítico teatral e dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.