Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “Sexo Neutro”: “Cristina Flores brilha em espetáculo sobre a transexualidade”


A peça, em cartaz no CCBB- Rio, foi escrita e dirigida por João Cícero e, em cena, o mesmo personagem é interpretado por dois atores: Cristina Flores, em excelente trabalho de interpretação, e Marcelo Olinto

Por Rodrigo Monteiro

“Sexo Neutro” estreou no fim de junho, trazendo à pauta do teatro carioca a questão da transexualidade. Escrito e dirigido por João Cícero, em cena, o mesmo personagem é interpretado por dois atores: Cristina Flores, em excelente trabalho de interpretação, e Marcelo Olinto. Eles interpretam Márcia que, após uma cirurgia de redesignação de gênero, passou a preferir ser chamada de Cleber. Ao longo da encenação, com méritos ao tema proposto, nota-se o pouco desenvolvimento da situação inicial infelizmente. A peça está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, até o início de agosto próximo.

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Na dramaturgia, João Cícero apresenta de forma bastante potente o personagem de Márcia/Cleber. Através de diálogo fluente, o espectador conhece a infância de Márcia no seio de uma família evangélica e suas primeiras experiências sexuais, bem como um fato bastante doloroso acontecido algum tempo antes da cirurgia a partir da qual passou a se chamar Cleber. O modo como as falas estão construídas revela habilidade do dramaturgo em construir frases que ofereçam marcas de suavidade ao longo discurso. Além disso, o desafio de dois atores interpretarem o mesmo personagem, ou dois pontos de vista sobre a mesma figura, é vencido rapidamente, o que é outro ponto bastante positivo desse texto. Em termos de análise estética, há ainda que se ressaltar o modo como “Sexo Neutro” reforça o choque do conceito de personagem na dramaturgia contemporânea. Márcia e Cleber não podem ser considerados apenas o passado e o presente de uma só pessoa, porque, sob vários aspectos, um esteve e ainda está dentro do outro. Em mesma direção, uma também não pode ser vista como a versão feminina e o outro a masculina do mesmo personagem, pois a mistura desses gêneros parece justamente ter sido o que esse texto defende como fator relevante na hora de se pensar sobre a complexidade do homem e a construção de sua identidade. Duas entre várias vozes dessa figura única, Márcia e Cleber são meios através dos quais João Cícero retratou esse personagem que é dono de vários discursos como qualquer ser humano. O problema do texto de “Sexo Neutro” é que, construídos os limites que mais ou menos embasam o campo onde essa situação acontece, pouco se vai além em termos de narrativa. Em primeiro lugar, narrador de sua própria história, Márcia/Cleber deixa claro que é possível que nenhum fato do passado tenha relação direta com os motivos que o levou à cirurgia. Depois, a descrição de sua situação presente termina o espetáculo frustrando as expectativas criadas, pois Cleber está insatisfeito sexualmente e pouco revela sobre como se sente em relação ao seu corpo atual. A cirurgia de redesignação de gênero, sem dúvida uma intervenção bastante relevante à existência de qualquer um, paira ao final como uma ação quase banal, desconectada como todos os demais acontecimentos da vida de Márcia/Cleber. Depois de tudo, o personagem segue desconfortável em seu próprio corpo.

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Em maneira bem interessante, na direção, João Cícero apresenta uma encenação de monólogo ainda que as falas de “Sexo Neutro” estejam organizadas em formato de diálogo. Voltando ao texto, o único conflito dessa narrativa é o fato da personagem Márcia não ser exatamente capaz de reproduzir o comportamento feminino esperado dela em função do seu gênero de nascimento. Sem dúvida, isso impõe um grande desafio à representação (o que faz aumentar o mérito do diretor). Nesse sentido, a interpretação compartilhada do personagem pelos atores Cristina Flores e Marcelo Olinto, na mesma medida em que traz a chance do jogo, oferece as dificuldades em relação à clareza, que são plenamente superadas. Em outras palavras, sem se opor entre si, Márcia e Cleber opõem-se consigo próprios. Essa situação inicial é bem apresentada, mas tem um desenvolvimento sem destaque e uma finalização problemática. O uso de microfones em pedestais não tem justificativas estéticas como também não as trocas de figurinos. No início do “segundo ato” (não há intervalo!), o ritmo se perde e esse não é recuperado infelizmente. Depois de noventa minutos, João Cícero parece ter chamado o espectador para o debate, mas saído dele tão logo ele começou a esquentar infelizmente.

Leva o espectador para casa, a grandeza do trabalho de interpretação de Cristina Flores, talvez em um dos seus melhores papéis como atriz. A força de sua atuação provém de um riquíssimo uso de sua potencialidade vocal, o modo como o corpo dá a ver as nuances do personagem, o jeito como Márcia reage às mais diversas situações narradas por ela própria. Marcelo Olinto, interpretando uma mulher que se tornou homem, felizmente nem sempre se deixa levar pelo uso afetado de mãos ou pelos ombros em diagonal, mas o constante uso regular da voz e do corpo colocam sua interpretação bastante distante da de Flores.

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Considerada a crueza do texto e a complexidade do tema, é ótimo não haver na encenação grandes doses de informações também no cenário e no figurino. João Dalla Rosa usa o cinza e o branco na apresentação das calças, tênis e das bermudas quase sempre apresentados com dorsos nus. Ao seu lado, a iluminação de Tomás Ribas projeta tons de rosa em um palco arrosado também. Em discretas participações, os vídeos de Evandro Manchini colaboram positivamente. Sem cortinas na boca, na rotunda e nas coxias, o quadro fica livre para o espectador (comum) respirar enquanto conhece a história de Márcia/Cleber e reflete sobre o que vê. Por todos esses aspectos, o panorama geral parece sugerir graça sem maquiar uma dura realidade, expondo a crueldade sem espetacularizar a dor.

“Sexo Neutro” sugere a reflexão por sobre a transexualidade. No mundo, o Brasil é um dos países onde mais transexuais morrem assassinados. A maior parte desses crimes se deve pela falta de conhecimento e de reflexão social acerca do tema. Por isso, a produção deve vista e aplaudida.

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Ficha técnica:
Texto e direção: João Cícero
Com: Cristina Flores e Marcelo Olinto
Dramaturg: Manoel Friques
Concepção de Cenário: João Cícero
Figurino: João Dalla Rosa
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha sonora original: Dimitri BR e Alexandre Hofty
Vídeos: Evandro Manchini
Direção de Movimento: Diana Behrens
Assistente de Produção e de Direção: Luisa Espindula
Fotos: Maria Flor Brazil
Operação de luz e contrarregra: André Martins
Operação de som: Rodolfo Wittboldt
Produção Executiva: Luana Carvas e Carolina Lyds
Programação Gráfica: Ilustrarte Design / Luiza Ache
Administração Financeira: Ângela Belluomini e Sonia Schimidt
Direção de Produção: Daniela Paita
Realização: Paita Produções Artísticas

Serviço:

Onde: Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB – Teatro III – Rua Primeiro de Março, 66
Quando: De quarta a domingo, às 19h30, até 02/08
Quanto: R$10 inteira e R$5 meia

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.