Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “Gata em telhado de zinco quente”. “Ótima volta de Eduardo Tolentino de Araújo ao Rio”


Com Zécarlos Machado, André Garolli, Fernanda Viacava e Noemi Marinho, em grandes atuações, ao lado dos protagonistas Bárbara Paz e Augusto Zacchi, ela em excelente interpretação. A peça fica em cartaz até o dia 21 de agosto no Centro Cultural do Banco do Brasil, na zona central do Rio de Janeiro.

*Por Rodrigo Monteiro

A montagem do paulista Grupo TAPA de “Gata em telhado de zinco quente”, do norte-americano Tennessee Williams, é a mais nova ótima versão desse clássico no Brasil. Escrita em 1955, ela ficou famosa no mundo pela adaptação cinematográfica em que Elizabeth Taylor e Paul Newman interpretavam o jovem casal Maggie e Brick. Por não ter filhos, eles sofriam a comparação com o irmão dele na disputa sobre quem ficaria com a herança da família. No original, porém, há muito mais do que isso. Entre seus temas, está a capacidade de cada um de conviver com os próprios segredos e com os dos outros por muito tempo. O diretor Eduardo Tolentino de Araújo brilhou por aqui, em 2014, com o seu “12 homens e uma sentença”. Agora, de novo em ótimo trabalho, ele dirige Zécarlos Machado, André Garolli, Fernanda Viacava e Noemi Marinho, em grandes atuações, ao lado dos protagonistas Bárbara Paz e Augusto Zacchi, ela em excelente interpretação e ele em péssima. A peça fica em cartaz até o dia 21 de agosto no Centro Cultural do Banco do Brasil, na zona central do Rio de Janeiro.

Augusto Zacchi e Barbara Paz (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Augusto Zacchi e Barbara Paz (Foto: Ronaldo Gutierrez)

A expressão “gata em teto de zinco quente” faz parte do vocabulário do sul dos Estados Unidos, tendo sido usada desde o início do século XIX para descrever a habilidade em se manter estável em situações de conflito. Na peça “Cat on a hot tin roof”, a imagem de um gato deitado no telhado de metal sob o sol escaldante, em que se pergunta sobre até quando ele aguentará o calor, abre o panorama geral onde se encontram os personagens.

Na história original de Tennessee Williams (1911-1983), em uma grande fazenda de algodão no Mississipi, uma família está reunida para comemorar o aniversário do patriarca (Zécarlos Machado). Os irmãos Brick (Augusto Zacchi), com sua esposa Maggie (Bárbara Paz); e Gooper (André Garolli), com sua esposa Mae (Fernanda Viacava) e seus cinco filhos, acabaram de almoçar com sua Mãe (Noemi Marinho) e o homenageado. A peça, que nessa versão (como no texto) acontece toda dentro do quarto de Brick e de Maggie, começa quando ela entra para trocar o vestido recém sujo por um dos filhos de Gooper. Ela relata ao marido o que aconteceu na mesa: seus cunhados fizeram de tudo para agradar o sogro Paizão (Big Daddy), esse que visivelmente, segundo Maggie, gosta mais de Brick, seu primogênito, apesar desse não ter filhos.

Toda a narrativa se passa na metade de um dia de maneira que o tempo da história e o de sua representação são os mesmos. Mas, aos poucos, vão ficando claros alguns antecedentes dramáticos. No passado, Brick fez algum sucesso como jogador de futebol, mas seguiu carreira como comentarista esportivo. Na madrugada anterior, de acordo com jornais do dia, ele quebrou o tornozelo quando tentava saltar na quadra da escola, expondo a público sua debilidade física. Essa se deve sobretudo à prática do alcoolismo, iniciada imediatamente depois da morte de seu fiel parceiro Skipper, que é quando também Brick e Maggie começaram a dormir separados e nunca mais tiveram qualquer relação sexual.

Assim, embora o título principalmente em português privilegie a personagem Maggie, é em Brick que toda a história de “Cat on a hot tin roof” acontece. Seu isolamento impõe a todos os demais personagens, a começar pelo de sua esposa, uma recondução de seus caminhos. Os fatos dele não ter tido filhos, de ter melhor se dedicado a uma (agora abandonada) carreira nos esportes e de ser alcoólatra dão a Gooper e sua família esperanças quanto à herança do Paizão, cuja morte por câncer pode acontecer em breve. Por seu turno, Paizão, aparentemente rejuvenescido no dia de seu aniversário, exige explicações sobre a saúde de seu filho preferido. Qual a verdadeira relação entre a morte de Skipper, o alcoolismo de Brick e a infertilidade do casal?

Andre Garolli, Fernanda Viacava, Augusto Zacchi, Barbara Paz, Noemi Marinho e Zecarlos Machado (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Andre Garolli, Fernanda Viacava, Augusto Zacchi, Barbara Paz, Noemi Marinho e Zecarlos Machado (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Na versão cinematográfica dirigida por Richard Brooks, lançada em 1958, questões que dizem respeito à amizade entre Skipper e Brick, que põem em dúvida a orientação sexual principalmente do segundo, são reduzidas à infidelidade de Maggie com quem Skipper teria se relacionado. Isso, e também a modificação do terceiro ato para um final feliz, desagradou Williams, então, já autor de “À margem da vida” (1944) e de “Um bonde chamado desejo” (1947), dentre muitas outras peças. Mantida nas versões teatrais, paira no palco, mesmo nessa versão de Augusto Cesar, o peso dos segredos no enfrentamento do presente. Nas palavras de Maggie, a vitória de uma gata em telhado de zinco quente é se manter.

“Cat on a hot tin roof” deu a Williams um Prêmio Pulitzer de Dramaturgia. Em sua estreia na Broadway, em março de 1955, a montagem dirigida por Elia Kazan ganhou indicações ao Tony de Melhor Direção, Melhor Atriz (Bárbara Bel Geedes) e de Melhor Espetáculo (quem ganhou foi “O diário de Anne Frank”) sem vencer nenhum. A versão cinematográfica foi indicada aos Oscar de Melhor Atriz (Taylor), Ator (Newman), Roteiro adaptado, Fotografia em cor, Direção e de Melhor Filme, mas não ganhou nenhum também. No Brasil, ficaram célebres as montagens teatrais dirigidas por Maurice Vaneau, em 1956, com Cacilda Becker e Walmor Chagas; por Paulo José, em 1976, com Tereza Rachel e Antônio Fagundes; por Kiko Jaess, em 1978, com Cleo Ventura e João Paulo Adour; e a por Moacyr Goes, em 1998, com Vera Fischer e Floriano Peixoto. A atual produção, de Cesar Baccan, estreou no último 5 de maio no CCBB de São Paulo.

A direção de Eduardo Tolentino de Araújo, como aconteceu em “12 homens e uma sentença”, articula bem grandes intérpretes e texto majestoso. Nessa dramaturgia, Tennessee Williams disfarça, nos diálogos, os referentes necessários para se compreender a situação a partir de sua complexidade. Desse modo, na medida em que eles vão sendo menos requisitados, o ritmo naturalmente melhora até que o clima vai ficando devastador. É como se um sol vagarosamente fosse aquecendo o telhado até o ponto em que mesmo uma tempestade não conseguisse esfriá-lo, mas talvez o deixasse ainda mais insuportável. Fazendo com que os atores explorem as palavras e as imagens do texto, ele oferece, de um modo geral, riquíssimo repertório de expressões que garantem a tensão sobre a qual se dá todo o conflito. A movimentação e sobretudo o jeito como os quadros foram articulados nessa montagem – que se dá sem intervalos – revelam criatividade, mas mais do que isso profundidade no trato. Tudo isso nutre convívio nobilíssimo entre o célebre autor, o palco e o público, feito que precisa ser valorizado.

André Garolli (Gooper), Fernanda Viacava (Mae) e Noemi Marinho (Mãezona) estão em ótimos trabalhos, aproveitando as oportunidades que têm com máxima potência. Eles colaboram bastante principalmente na terceira parte da peça com os méritos de toda a obra, recheando de segundos sentidos suas menores expressões. Elas garantem a força do panorama geral positivamente.

A interpretação de Augusto Zacchi, já elogiado aqui por sua participação em “Chuva Constante”, dada a responsabilidade de Brick na viabilização de toda a narrativa, é o único problema da montagem. Nela há o disfarce da carência de conteúdo pela apatia. Não há uma só frase, em toda a extensão do espetáculo, que seja dita de modo íntegro. Revelam-se as palavras de Tennessee Williams, mas não se vê qualquer pesquisa nem em sua entonação, nem nas expressões faciais. Nos momentos de êxtase, os rompantes do personagem possibilitam melhor dicção, mas a alternância entre nada e tudo empobrece sua colaboração. Desse modo, as contracenas de Zachi com Zécarlos Machado e com Bárbara Paz ficam muito prejudicadas.

Zécarlos Machado (Paizão) brilha em um dos personagens mais ricos de “Gata em telhado de zinco quente”. No texto, Big Daddy é um grosseirão do sul cujo sucesso financeiro não lhe trouxe qualquer requinte. Por outro lado, por ter herdado a fazenda dos seus antigos patrões – o casal homossexual Jack Straw e Peter Ochello –, seu ponto de vista sobre o tema torna essa dramaturgia de sessenta anos atrás muito à frente de seu tempo positivamente. E Machado dá vida a essa complexidade de maneira excelente. Força e delicadeza, masculinidade e sensibilidade se veem no personagem que achava que ia morrer, mas se descobre mais vivo que seu filho ainda jovem.

Zécarlos Machado e Bárbara Paz (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Zécarlos Machado e Bárbara Paz (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Bárbara Paz, mais uma vez, apresenta uma atuação irreparável. Sua Maggie equilibra sensualidade e medo, poder e fraqueza, abrindo as portas desse Tennessee Williams ao público e, com habilidade, abandonando-o lá como bem quis o dramaturgo no diálogo final. Como um vulcão explodindo desejo sexual e pela maternidade, a personagem interpretada tão bem por essa atriz revela as nuances de um casal que é metáfora para a visão de sociedade do autor. Excelente!

Pela primeira vez assinando um figurino para teatro, Glória Kalil estreia em “Gato em telhado de zinco quente” como se já tivesse experiência nessa especificidade da função. Com elegância, suas modelagens conferem ao espetáculo altíssimo valor estético. No entanto, são os usos das cores que merecem ser mais elogiados. A preferência por meios-tons se articula com o cenário em algodão e em madeira de Ana Mara Abreu e de Alexandre Toro com intimidade. O quadro geral, em que se valoriza a iluminação azul e âmbar de Nelson Ferreira, fica quase inteiramente champagne: exatamente no meio do caminho entre o ouro, o prata e o bronze. O sentido é claro. Sem coragem, flerta-se perigosamente, disfarçando a verdade. Eis o conceito de “mendacity” (tendência a mentir) que foi traduzido aqui para “falsidade” de cujo nojo Brick diz sentir ao justificar seu comportamento. A supervisão musical e o desenho de som de Marcelo Pellegrini são outros dois excelentes usos que a peça faz na construção do seu discurso.

Eis uma ótima pedida na programação teatral do Rio de Janeiro. A ver!

*

FICHA TÉCNICA
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Texto: Tennessee Williams
Tradução: Augusto Cesar
Direção: Eduardo Tolentino de Araujo

Elenco / Personagem:
Bárbara Paz / Maggie
Augusto Zacchi / Brick
Fernanda Viacava / Mae
Noemi Marinho / Mãezona
André Garolli / Gooper
Zécarlos Machado / Paizão

Figurino: Gloria Kalil
Cenário: Ana Mara Abreu e Alexandre Toro
Iluminação: Nelson Ferreira
Cenotécnicos: Jorge Ferreira e Denis Nascimento
Supervisão Musical e Sound Design: Marcelo Pellegrini
Produção Musical: Surdina
Hair Stylist: Ricardo Rodrigues
Fotos: Ronaldo Gutierrez
Arte: Rafael Branco
Produção Executiva: Paloma Galasso
Produção Geral: Cesar Baccan / Baccan Produções
Idealização: Grupo TAPA
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

SERVIÇO:

Onde:: Teatro I do CCBB – Rua Primeiro de Março, 66, Centro / RJ   Tel: 21 3808-2020
Quando: de 4ªa domingo, sempre às 19h / Até 21 de agosto
Quanto: R$20,00 e R$10,00 (meia entrada)

*Rodrigo Monteiro é nosso crítico teatral e dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.