Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “Chica da Silva – O musical”. “Destaque para a excelente Vilma Melo!”


Na montagem dirigida por Gilberto Gawronski e escrita por Renata Mizrahi, a famosa história de Chica da Silva (1732-1796) surge como pano de fundo para uma narrativa original e contemporânea

*Por Rodrigo Monteiro

“Chica da Silva – O musical” é o novo espetáculo com texto de Renata Mizrahi em cartaz. A peça é dirigida por Gilberto Gawronski e tem a excelente Vilma Melo no papel título ao lado de Antônio Carlos Feio, Ana Paula Black, Tom Pires e Luciana Victor, essa última em ótima trabalho, no elenco. Na montagem, a famosa história de Chica da Silva (1732-1796) surge como pano de fundo para uma narrativa original e contemporânea. Francisca é proprietária de uma loja de sapatos em um shopping chique da cidade que é vítima de uma situação de preconceito racial. Em destaque também, está o cenário e figurino de Karlla de Luca. A produção fica em cartaz até o próximo dia 30 de outubro no teatro do Centro Cultural Correios, na zona central do Rio de Janeiro.

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O maior mérito da dramaturgia de Renata Mizrahi, só agora estreando nos musicais, é o modo como a personagem que dá título ao espetáculo surge como argumento da encenação. Chica da Silva (Vilma Melo), cuja biografia remonta o Brasil colonial, divide a cena aqui com uma narrativa original que acontece nos dias de hoje. Na história, em um dia como outro qualquer, uma Cliente (Luciana Victor) vai a uma loja de sapatos a fim de trocar um par do qual está insatisfeita. Francisca (também interpretada por Melo), ao atender-lhe, repara que o produto, comprado há meses, já foi usado mais de uma vez e indefere, por isso, o pedido. A reação brutal antecede a exigência de falar com a proprietária. Quando Francisca assim se declara, ouve como resposta que isso não é possível porque uma mulher “como ela” não poderia ter um estabelecimento daquele em um shopping na zona nobre da cidade. Eis uma clara situação de preconceito racial.

O conflito social que a cena revela é seguido de outro narrativo. Francisca, há dois anos, namora com um homem cuja família ela não conhece. Sua surpresa é enorme ao saber que sua futura sogra é a Cliente que lhe agrediu e que, desde então, está processando judicialmente. Nas mãos habilidosas de Mizrahi, a intercalação desse enredo com as referências à Chica da Silva exibe a longa e infeliz permanência do preconceito racial em nossa cultura. E pontua meritosamente a posição do espetáculo como veículo de transformação social.

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“Chica da Silva – O musical”, com canções conhecidas e outras originais, participa da comemoração dos quarenta anos do célebre filme “Xica da Silva“, de Cacá Diegues, em que a personagem foi interpretada por Zezé Mota, essa vencedora de inúmeros prêmios por seu trabalho na obra. E também pelos vinte anos da novela homônima, de Walcyr Carrasco (Rede Manchete), em que Taís Araújo defendeu o papel. Francisca da Silva de Oliveira, conhecida como Chica da Silva, foi uma brasileira mulata que era escrava até ser alforriada, o que pode ter acontecido (ou não) durante seu relacionamento com João Fernandes de Oliveira (1720-1779), brasileiro branco e muito rico. O casal, apesar de não ter se casado na igreja, gozou de enorme prestígio na localidade de Diamantina, fazendo atravessar sua história pelos séculos seguintes. Chica é um símbolo da força do dinheiro nas relações sociais corrompidas pelo preconceito.

Com diálogos cheios de lirismo e uma estrutura narrativa capaz de unir catolicismo e candomblé, século XVIII e contemporaneidade, narrativa e engajamento social claro, o texto marca o início de uma carreira venturosa da já consagrada dramaturga Renata Mizrahi no gênero musical. Vida longa!

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“Chica da Silva – O musical” é o segundo musical dirigido por Gilberto Gawronski, vindo exatamente depois do delicioso “Estúpido Cupido”. Esse desafio, no entanto, é muito diferente daquele. Muito menos focada no puro (e valoroso!) entretenimento, essa produção não se apresenta com largas oportunidades para grandes coreografias, entradas e saídas de cenário, agudos sonoros e para figurinos brilhantes. Aqui o tema exige uma abordagem mais intimista que dê conta do tema a partir de seu cunho social. Dentro da proposta, assistida por Renato Krueger, a direção tem pontos positivos.

Gawronski optou por manter todos os intérpretes em cena ao longo de toda a peça, propondo, através disso, uma profundidade que é muito interessante. A relação entre as presenças no fundo do palco e à frente e os movimentos dessas figuras na articulação das cenas parecem almejar substituir, em termos de sua função na narrativa, as trocas de cenários e de figurinos. De modo simples, o efeito atribui balanço positivo ao ritmo e, melhor ainda, propicia as associações entre os diferentes contextos que a dramaturgia de Mizrahi sugeriu. Em outras palavras, o fato de tudo ser visto desde sempre e até o fim, se abre com dificuldades o espetáculo, revela sua potência, sua complexidade, sua disposição em tratar do tema de maneira séria. É um ato corajoso.

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No entanto, essa opção impõe muitos riscos às interpretações. Em vários momentos, Antônio Carlos Feio, Ana Paula Black, Tom Pires e Luciana Victor precisam sustentar feições neutras para não poluir a hierarquia do foco. Se conseguem, isso revela seus méritos enquanto bons intérpretes. Os dois primeiros participam majoritariamente do eixo do século XVIII e os dois segundos da contemporaneidade, mas, em alguns momentos, os quadros se compõem por todo o coletivo, que é quando o panorama fica mais conturbado.

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Luciana Victor (Cliente) se destaca entre os papeis coadjuvantes. Em primeiro lugar, Mizrahi não termina sua narrativa no espetáculo, pois não se sabe – e isso é positivo! – como terminou o processo judicial movido contra ela por Francisca. Em segundo lugar, no todo da narrativa da peça, sua presença como vilã na contemporaneidade é muito forte e não encontra eco no outro eixo de modo que suas zonas neutras, na direção de Gawronski, é um terreno pantanoso. Tudo isso exibe o quanto é qualificada sua contribuição.

Vilma Melo está brilhante nesse trabalho! O jeito como a atriz sustenta cada palavra e todas as frases e a maneira como, por trás do discurso oral, há potente mobilização gestual e corporal são exultantes. O jogo que a intérprete estabelece com o público, privilegiando-o na medida em que atua quase sempre virada para ele, avisa a audiência acerca da interlocução primeira. É com quem assiste que Francisca/Chica está falando em primeiro lugar. Isso, na qualidade com que é feito, emociona! Eis uma das melhores interpretações do ano na programação teatral carioca, sem dúvida.

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A peça se apresenta ainda com belíssima contribuição de Karlla de Luca no cenário e nos figurinos. A preferência por tons terrosos médios, do champagne ao dourado, aquece a narrativa, aproximando a reflexão. O modo como o quadro está posto, ao lado da luz de Renato Machado, eleva o número de valores visuais da obra. A direção musical de Alexandre Elias, pela força com que faz surgir as canções e pela riqueza dos detalhes na participação dos sons que ajudam a estruturar a(s) história(s), também é muito positiva e merece aplausos.

“Chica da Silva – O musical”, idealizado por Alexandre Lino e por Daniel Porto, é uma ótima pedida no teatro carioca. Vale a pena correr para ver!

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SERVIÇO:

Onde: Centro Cultural Correios: Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro.
Quando: quinta a domingo, às 19h. Até 30/10
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)

FICHA TÉCNICA:
Texto: Renata Mizrahi
Direção: Gilberto Gawronski
Idealização: Alexandre Lino e Daniel Porto
Pesquisa: Daniel Porto
Elenco: Vilma Melo, Antônio Carlos Feio, Ana Paula Black, Luciana Victor e Tom Pires
Diretor Musical: Alexandre Elias
Músicos: Di Lutgardes, Reginaldo Vargas, Victor Dutra e Tássio Ramos
Assistente de direção musical: Victor Durante
Preparação Vocal: Ananda Torres
Direção de Movimento: Carlos Muttalla
Assistente de Direção: Renato Krueger
Consultoria de conteúdo: Cristina Lopes
Iluminação: Renato Machado
Cenário: Karlla de Luca
Figurinos: Karlla de Luca
Desenho de som: Rossini Maltoni
Programação Visual: Guilherme Lopes Moura
Fotos e Vídeos: Janderson Pires
Visagismo: Sandra Moscatelly
Cenotécnico e Pintura de Arte: Emphorium Carioca
Costureira: Maria Helena
Operador de Luz: Kelson Alvarenga e Diego de Assis
Operador de Som e Microfonista: Kelson Santos Alavrenga
Bilheteria: Equipe Cineteatro
Direção de Produção: Alexandre Lino
Produção Executiva: Daniel Porto, Mariana Martins e Tom Pires
Assistente de Produção: Renato Krueger
Coordenação – Lei Rouanet: Jéssica Santiago
Prestação de contas: Jéssica Santiago
Assessoria jurídica: André Siqueira
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna, Paula Catunda e Rachel Almeida.
Homenagem especial: Zezé Motta
Realização: CINETEATRO PRODUÇÕES

*Rodrigo Monteiro é nosso crítico teatral e dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.