Crítica Teatral: Rodrigo Monteiro analisa “A Voz Humana”. “Com coragem, Claudia Ohana vence desafios em célebre monólogo”


Para além de todas as questões que a dramaturgia de Jean Cocteau revela sobre relacionamentos, “A voz humana” antecipa uma discussão sobre a virtualidade

* Por Rodrigo Monteiro

O célebre monólogo “A voz humana”, do francês Jean Cocteau (1889-1963), ganha ótima interpretação de Claudia Ohana sob direção de José Lavigne. Na peça, uma mulher amargurada conversa ao telefone com um homem que a abandonou por outra. O texto sugere várias reflexões sobre as relações amorosas, mas principalmente sobre o poder da tecnologia na comunicação. Em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Shopping da Gávea, eis uma montagem que difere da programação normal do lugar. Por isso, mas por além, merece aplausos.

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Escrito em 1928, “A voz humana” estreou em 1930 em uma produção da Comédie-Française, com interpretação de Berthe Bovy (1887-1977). Tendo recebido avaliações diversas, o aspecto surrealista foi visto de modos diferentes ao longo das décadas desde então. Apesar do texto continuar sendo atual, o tom onírico que a situação revelava naquele momento hoje é dificilmente legível. Apesar de já existir há cinquenta anos na capital francesa, o uso do telefone, principalmente para longas conversas, ainda não era popular entre os anos 1920 e 30. Na peça, sobrevivente de uma tentativa de suicídio, uma mulher conversa por telefone com o homem que recentemente a abandonou. Ela ainda está apaixonada por ele e sofre na esperança de manter o laço afetivo.

O espectador não ouve a voz do interlocutor da personagem, mas a vê em uma situação que nem sempre concorda com o modo como ela fala de si para ele. A conversa é interrompida várias vezes inclusive pela entrada de uma terceira pessoa (que também não se vê nem se ouve) que surge em linha cruzada. Para fruir melhor a narrativa, o espectador há de perceber a oposição entre, pelo menos, dois mundos: aquele que se vê e aquele sobre o qual fala a protagonista.

Para além de todas as questões que a dramaturgia revela sobre relacionamentos, “A voz humana” antecipa uma discussão sobre a virtualidade. Caro à sociedade contemporânea, o tema tem a ver com redes sociais e com o modo como elas, de alguma maneira, modificaram as relações. Presa a uma imagem, que no contexto da peça só é defendida por uma voz, a protagonista lida com o presente. Sem nem mesmo ouvir esta voz, o espectador faz suas reflexões. Sem dúvida, uma obra essencial para entender o século XX e aquele em que já vivemos.

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Com bastante sensibilidade, Claudia Ohana exibe bela entrega à personagem. A evolução do monólogo é facilmente identificada pelo jeito expressivo como a intérprete dá conta das nuances, das variações de tom, do aprofundar das questões mais essenciais. A dosagem das emoções, os tempos em que as falas são ditas, o modo comedido e pontual de seus movimentos, a feminilidade e a sensualidade na condução do corpo materializa com méritos o lugar sensível da protagonista.

O cenário, assinado por Edgar Duvivier, usa o vermelho de modo abstrato para oferecer algum contexto não-realista para a obra. Soltando o contexto no grande palco do Teatro Clara Nunes, o feito não dá conta de suas intenções. Quase um espelho, o painel de fundo com linhas superiores em diagonal remete a um expressionismo pouco colaborativo no quadro. A cor e a forma, ao lado do figurino de Carla Garan e do visagismo de Pino Gomes, só ratificam a ligação entre Ohana e Natasha, essa célebre personagem que a atriz interpretou na novela “Vamp”, de Antônio Calmon, no início dos anos 90. Aquela ótima comédia televisiva nada tem a ver com esse texto de Jean Cocteau, o que enche de desafios a intérprete em defender novo trabalho. Faz essencial participação a luz de Felipe Lourenço.

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Há ainda outra questão que, não sendo da ordem da estética, também impõe dificuldades à valorosa encenação. A preferência da programação dos teatros do Shopping da Gávea por comédias de costumes atravessa as alternativas que se surgem possíveis. “A voz humana” é um ótimo texto e que é apresentado com qualidade no âmbito da interpretação dirigida por José Lavigne com delicadeza. Mas o público, dado ao riso mais fácil, sem saber (?) como se põe o celular no silencioso e disposto a reencontrar no palco o que já vê na televisão atrapalha aquele que está disposto a aproveitar o que o palco lhe sugere em via alternativa. Isso aumenta o mérito de Claudia Ohana.

Eis um trabalho que precisa ser valorizado. Aplausos.

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Ficha técnica:
Texto de Jean Cocteau
Direção: José Lavigne
Com: Claudia Ohana
Cenário: Edgar Divivier
Iluminação: Felipe Lourenço
Figurino: Carla Garan
Visagismo: Pino Gomes

Serviço:

Onde: Teatro Clara Nunes Rua Marques de São Vicente 52, Gávea
Quando: Sáb, às 19h. Dom, às 18h. Até 20 de dezembro.
Quanto: R$ 50.

* Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.