Crítica teatral – Rodrigo Monteiro analisa o espetáculo “A Santa Joana dos Matadouros”, com Luisa Arraes: “Um dos melhores do ano certamente”


Para Rodrigo Monteiro, nosso crítico da ribalta, “os atores dizem o texto sem amolecer as palavras, valorizando sua sonoridade” e todo o contexto deixa o espectador em “êxtase estético”

Por Rodrigo Monteiro*

O excelente “A Santa Joana dos Matadouros” é capaz de de oferecer ao espectador não apenas êxtase estético, mas refinada reflexão política. Dirigido por Diogo Liberano e por Marina Vianna, o trabalho é uma adaptação do original de Bertolt Brecht. No elenco, Luisa Arraes brilha na personagem título ao lado de um conjunto de participações igualmente cheias de méritos, como as de João Velho, Leonardo Netto, Vilma Melo e de Adassa Martins. A produção conta ainda com qualificada colaboração da direção de arte de Bia Junqueira, da direção musical de Rodrigo Marçal e de Arthur Braganti e da iluminação de Paulo Cesar de Medeiros. O espetáculo estreou nesse final de semana no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana, e cumpre temporada até 21 de dezembro.

A Santa Joana dos Matadouros

Elenco de “A Santa Joana dos Matadouros” (Foto: Divulgação/Thaís Grec)

O texto original de “Santa Joana dos Matadouros” foi escrito pelo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) logo depois do sucesso do seu “A ópera dos três vinténs”, de 1928. Naquele momento e lugar, o povo germânico estava destroçado. Sessenta anos antes, inúmeras revoltas haviam unido vários pequenos reinos em um só país chamado Alemanha, o mesmo que, em 1918, havia perdido uma guerra sangrenta contra a França, a Inglaterra e os Estados Unidos. Com a identidade debilitada, a economia falida e uma posição internacional praticamente inexistente, a Alemanha foi um dos países que mais sofreu as consequências do colapso da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929.

Personagem protagonista da narrativa, Joana é uma pobre moradora de Chicago, nos Estados Unidos, onde se passa a história. Ela faz parte dos “Boinas Negras”, ou “Soldados de Cristo”, grupo que se dedica a fazer pregações religiosas entre os trabalhadores da cidade. As aspirações teológicas do grupo, porém, vão à falência diante do frio e da fome compartilhada pelos frequentadores ao longo da crise econômica. Então, Joana decide conhecer o responsável pelos dissabores vividos por ela e pelos seus irmãos. É quando se dá o encontro entre Joana e Mauler, rico empresário dono dos matadouros e das fábricas onde se industrializa carne enlatada. Os dois personagens, ao lado de Slift (quem gerencia os negócios de Mauler) e de Snyder ( o líder religioso), são as estruturas fundamentais dessa narrativa brechtiana.

Em 1920, o papa Bento XV havia santificado a mártir francesa Joana D’Arc (1412-1431). Nos momentos finais da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), a França estava dividida: de um lado, a nobreza de Borgonha apoiava o inglês Henrique VI, coroado rei da França em Paris. De outro, os Orleáns apoiavam a coroação do francês Carlos VII. Em meio à guerra, para demonstrar seu apoio ao segundo, a então a jovem Joana D’Arc atravessou perigosamente o território inimigo e, sem nunca ter visto o delfim, o reconheceu sem ajuda em uma sala repleta de outros nobres. Em “Santa Joana dos Matadouros”, Brecht reproduz essa cena quando Joana, sua protagonista, reconhece Mauler entre os executivos em reunião. No texto, além dessa, há várias outras pontes entre as duas personagens.

Luisa Arraes é a missionária Joana Dark, e João Velho vive Mauler (Foto: Divulgação/Thaís Grec)

Luisa Arraes é a missionária Joana Dark, e João Velho vive Mauler (Foto: Divulgação/Thaís Grec)

Assim, dentre os vários méritos do texto, está o fato de ele ser lugar de confluência entre diversos acontecimentos históricos além de oportunidade de reflexão política. A França de Joana D’Arc havia sido inimiga da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Os Estados Unidos também, mas o pequeno levante da indústria alemã na República de Weimar havia se dado graças ao dinheiro americano que entrou fartamente ao longo dos anos 20. Logo ali ao lado, a Rússia vivia o regime socialista a favor do qual Bertolt Brecht havia sempre se manifestado. Nesse sentido, para longe de um proselitismo político, esse como todos os outros textos desse autor consegue a façanha de inspirar um pensamento político-ideológico, mas sempre, antes de tudo, ressaltando a humanidade nos personagens em questão.

“Santa Joana dos Matadouros” só foi produzido para teatro em 1959, três anos depois do falecimento de Bertolt Brecht. Hanna Hiob, filha do autor, interpretou a personagem título na ocasião. Em vida, ele dirigiu uma versão para rádio (o original demoraria três horas para ser encenado) em abril de 1932. No Brasil, a tradução de Roberto Schwarz, que Vianna e Liberano usaram na montagem aqui analisada, também serviu de base para a da Companhia do Latão, de 1998. A produção mais recente, assinada por José Renato, aconteceu em 2010, tendo essa feito várias apresentações principalmente em sindicados e em outros movimentos e eventos sociais.

Ao lado das questões da ordem da fábula, existem no teatro brechtiano outros aspectos relevantes que o espetáculo “A Santa Joana dos Matodouros” também bem apresenta. O autor, jutamente com o diretor Erwin Piscator (1893-1966), propôs uma alternativa para o teatro dramático (realista) ou o de verve lírica (simbolista) produzido na Europa no início do século XX. Chamou-se de Teatro Épico o movimento da dupla em favor de um tipo de espetáculo teatral em que o público não ficasse absorto ao longo da encenação, mas se mantivesse conscientemente capaz de tomar decisões e de assumir o controle de suas reflexões. O “efeito de distanciamento” (verfremdungseffket) consistia, assim, em um conjunto de ações da encenação que tinham o objetivo de fazer o espectador acordar do topor ilusório, lembrar de que estava em um teatro e que a realidade, ao redor dali, não havia deixado de existir. Daí que o discurso de “Santa Joana dos Matadouros” é intercalado de frases dirigidas diretamente à plateia, os tempos verbais remetem ao tempo narrativo, mas também ao futuro, e o que é dito nem sempre concorda com as ações que estão sendo realizadas. Tudo isso, que hoje em dia faz parte do que se poderia chamar de linguagem teatral, era novidade nos palcos da Alemanha dos anos 30.

A Santa Joana dos Matadouros 2

Encenação para divulgação de “A Santa Joana dos Matadouros”

A direção de Marina Vianna e de Diogo Liberano confortavelmente se esforça em atualizar essa perspectiva original na encenação do texto. A peça começa quando Marta (Adassa Martins) surge do público e fala com a plateia. Segue-se um momento em que os atores entram e preenchem o palco com centenas de camisetas de malha que, sob o desenho de luz de Paulo Cesar de Medeiros, fazem o palco ganhar aparente textura de pele humana. Essas mesmas camisetas ganharão toda a ordem de sentido ao longo do espetáculo, exigindo do espectador que ele assuma o controle do sentido ofertado a elas. Marcas conhecidas estampadas relacionam a peça ao momento presente.

Ao longo de duas horas, em uso brilhante do ritmo, a narrativa se alterna em movimento de abrir e de fechar, avançando na fábula, mas convocando o público para a reflexão. Os atores dizem o texto sem amolecer as palavras, valorizando sua sonoridade. Dividido em vários planos, o palco é lugar usado pelo elenco em quadros cuja beleza confere a direção muitos motivos para se elogiar. A cena em que Gunnar Borges parece manipular os movimentos de Luisa Arraes é um dos pontos altos no teatro carioca de 2015.

Também composto por Leandro Santanna, Sávio Moll e por Gunnar Borges, o elenco tem ótimas participações de Adassa Martins (Marta), de Leonardo Netto (Slift) e de Vilma Melo (viúva Luckernidle) dispostas a deixar ver grande força e alta capacidade de significação nos menores detalhes. Talvez no melhor trabalho de sua carreira, João Velho (Mauler) se esforça em dizer o texto mais difícil na beleza de suas palavras embora nem sempre com a máxima potencialidade que o papel lhe reserva. Luisa Arraes tem atuação nada menos que brilhante. Sua Joana se oferece tal cordeiro em sacrifício, mas é também leão que ruge no deserto: a perfeita complexidade na figura divina da qual trata Brecht ao longo do texto. Suas palavras finais emocionam. Eis um trabalho marcante!

A diretora de arte Bia Junqueira tem participação essencial nos méritos dessa produção. O figurino, além de sugerir essa atualização da teoria por trás do texto original, também não hesita em narrar. Joana usa roxo nas cenas finais em uma referência ao especto místico de sua personagem, vários personagens usam aparelhos ortopédicos, o corte da camiseta do líder religioso Snyder não é como o dos demais. O cenário, com poucos elementos, constrói a sensação do clima gelado em que vivem os personagens. A direção musical de Rodrigo Marçal e de Arthur Braganti e a iluminação de Paulo Cesar de Medeiros estão tão bem articuladas ao guarda-roupa e aos elementos cenográficos que a estrutura “A Santa Joana dos Matadouros” parece indissociável, movimentando-se pelo tempo e através do espaço de modo sólido mas honradamente perene.

A produção atual de “A Santa Joana dos Matadouros”, cuja dramaturgia inclui o texto original de Bertolt Brecht, mas foi acrescida de outros elementos, foi idealizada por Marina Vianna. Pouco encenado no Brasil, eis aqui uma oportunidade de assistir a um excelente espetáculo em cartaz, um dos melhores do ano certamente.

FICHA TÉCNICA
Do original “Santa Joana dos Matadouros”, de Bertolt Brecht
Direção: Marina Vianna e Diogo Liberano
Tradução: Roberto Schwarz
Dramaturgia: Diogo Liberano
Elenco: Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo
Músico em cena: Arthur Braganti
Direção de arte: Bia Junqueira
Direção Musical: Rodrigo Marçal e Arthur Braganti
Direção de Movimento: Laura Samy
Iluminação: Paulo César Medeiros
Produção executiva: Marcelo Mucida
Direção de produção: Ana Lelis
Realização: Moinho Produções
Idealização: Marina Vianna e Luisa Arraes

Personagens:
Luisa Arraes – Joana Dark, a missionária
João Velho – Mauler, o rei da carne enlatada
Leonardo Netto – Slift, braço direito de Mauler
Sávio Moll – Cridle, industrial da carne enlatada
Vilma Melo – D. Luckernidle, viúva de um trabalhador
Adassa Martins – Marta, missionária
Leandro Santanna – Snyder , missionário
Gunnar Borges – Gloomb, um trabalhador

Serviço

Quando: quintas, sextas, sábados, domingos e segundas-feiras às 20h

Local: Teatro Glaucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/nº, Copacabana – Rio de Janeiro – RJ)

Informações: Tel: (21) 2332 7904 (bilheteria) (21) 2332 7970 (administração)

Lotação: 102 lugares

Compras online :http://www.ingresso.com/rio-de-janeiro/home/local/teatro/teatro-glaucio-gil

*Rodrigo Monteiro é dono do blog “Crítica Teatral” (clique aqui pra ler) , licenciado em Letras – Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, bacharel em Comunicação Social – Habilitação Realização Audiovisual, com Especialização em Roteiro e em Direção de Arte pela mesma universidade, e Mestre em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Curso de Bacharelado em Design da Faculdade SENAI/Cetiqt. Jurado do Prêmio de Teatro da APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) desde 2012.