Na polêmica “Enjoy” em parceria com a Cavalera, Regina Guerreiro alfineta a relação entre a sociedade e o corpo à mostra


A jornalista fala sobre os escândalos desde 1900 e, em cima disso, HT acrescenta mais uma pitada de questionamento sobre a cultura de repressão ao nu e aos padrões de beleza vigentes

*Por João Ker

No novo episódio de Enjoy, aquela websérie bacana criada em dupla por Alberto Hiar da Cavalera com a jornalista Regina Guerreiro, que você também tem acompanhado aqui pelo site, o tema é  a revolução do corpo e do comprimento das roupas. A pensadora de moda e ex-editora da Vogue e da Elle Brasil começa relembrando como a sociedade se chocou em 1900 quando as mulheres ousaram e resolveram mostrar o tornozelo pela primeira vez em público, diminuindo o comprimento da barra do vestido para o espanto daqueles senhores respeitabilíssimos. No capítulo batizado “Ui! Que escândalo!”, ela ainda relembra como Mademoiselle Chanel abominava o joelho e fez questão de cobri-lo em 1925; como Diana Vreeland (talvez a mais ousada editora da Vogue americana em todos os tempos) chamou o biquíni de “bomba atômica”; e como uma moça foi apedrejada em Madri por usar minissaia durante os anos 1960.

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“Eu adoro terremotos fashion”, afirma uma Regina ardida como pimenta no vídeo, com um sorriso enviesado enquanto comenta sobre a transgressão pioneira de Yves Saint Laurent ao mostrar os seios de uma modelo na passarela. “A moda não é uma tragédia, é um divertimento. Mas senso de humor é coisa rara. […] O tempo em que a nudez provocava escândalos já passou”, observa a jornalista, terminando com a conclusão: “Mas não é que agora, em pleno calorão 2014, nós estamos quase chegando ou voltando para lá?”.

Enjoy #8 – “Ui! Que Escândalo!”

HT sempre amou e sempre vai amar Regina Guerreiro, principalmente quando ela expressa opiniões que ninguém mais tem coragem de dizer. E é importante salientar algumas coisas que vêm chamando a atenção quando o assunto é corpo & mídia, ou ainda a forma como a nudez vem sendo tratada pelo público e por grande parcela da sociedade. O que parece existir agora é uma dualidade de pensamentos entre a opinião de quem é a favor do corpo como pura forma de expressão e as máximas de uma galera barulhenta que ainda enxerga o nu como afronta aos bons costumes e aos padrões tradicionais sociais, os mesmos responsáveis pelo apedrejamento da moça espanhola que Regina presenciou.

O mais recente e famoso caso é, sem dúvida, a já icônica e igualmente infame capa de Kim Kardashian para a Paper Magazine, recriando uma foto de Jean Paul Goude feita em 1976. Ora, essa não é a primeira vez em que a socialite mostra o corpo, ainda mais considerando que ela só dispõe do atual status internacional graças a uma sex tape da qual a própria diz não se envergonhar nem um pouco. Sim, Kim já posou para a Playboy e, na época, ela não “quebrou a internet” e nem despertou metade da ira que seu recente ensaio para uma revista de moda levantou. As críticas que surgiram foram as seguintes: “Ela não pode aparecer pelada na capa de uma revista!”; “Ela é mãe!”; “Quem acha esse tipo de corpo bonito?” e por aí vai. Pois bem, vamos como Jack, O Estripador: por partes.

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Falar que uma mulher precisa abdicar da própria sensualidade por ter entrado na maternidade talvez seja um dos argumentos mais estranhos já proferidos. Preconceito parecido com aquele que foi enfrentado por Demi Moore em uma fotografia histórica de Annie Leibovitz para a capa da Vanity Fair, na qual a atriz aparecia gravidíssima e como veio ao mundo. Os anos se passaram e os conceitos por trás de tal imagem já foram reproduzidos à exaustão por gente como Claudia Schiffer, Christina Aguilera, Britney Spears e outras mulheres que revelam o casamento gravidez + maternidade como um veículo para se orgulhar do próprio corpo. Mas o papo agora é Kim Kardashian e, aparentemente, tudo sobre ela causa revolta pelos quatro cantos do mundo.

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Atacar a forma do corpo é preconceito típico criado pelos padrões de beleza vigentes, qualquer que seja a época, e essa questão já foi discutida infinitas vezes. Sinceramente, quase mais tem paciência para essa discussão, talvez nem mesmo as próprias máquinas e indústrias que os consagraram. A voluptuosidade do corpo parece espantar, chocar e irritar, principalmente sob a voluptuosa silhueta de Kardashian. Fato é que a bunda grande (a essa altura, a própria palavra já deveria ter sido banalizada há tempos) está mais em evidência do que nunca: Jennifer Lopez recentemente lançou uma música chamada “Booty”, no qual o vídeo é praticamente formado por bundas molhadas, rebolativas e escancaradas para quem quiser conferir. Beyoncé e Nicki Minaj também podem ser vistas como grandes representantes do formato abundante. E Diplo – não por coincidência, o produtor da faixa de J.Lo – sempre foi um defensor desse atributo, tendo lançado uma música em parceria com Bruno Mars chamada “Bubble Butt” (“Bunda de bolha”, em tradução livre) e chegando ao absurdo de criticar publicamente Taylor Swift por ter uma retaguarda menos avantajada.

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No Brasil, a hipocrisia não é diferente. Por aqui, Kim também foi “apedrejada” virtualmente, logo no país conhecido mundialmente pelo shape estonteante e curvilíneo de suas habitantes (não que essa fama seja sempre positiva para sua imagem, mas, de fato, ela existe).  Parece até que as pessoas já esqueceram da febre (nem tão antiga assim) das mulheres-frutas as quais, bem ou mal, tiveram seu momento-ápice na cultura popular, a ponto de a Mulher Melancia ter recriado a famosa capa de Marilyn Monroe para uma suculenta Playboy, possivelmente dando muito mais caldo.

E isso sem falar do Carnaval, que sempre foi e será um grande desfile de corpos pintados com glitter, todos à mostra, combinados com sorrisos gigantes das mulatas que riscam a Avenida e fazem a festa da carne brasileira ser a melhor do mundo. Portanto, uma questão ainda a ser levantada é a crescente culpa e machismo velado que cercam de protecionismo o corpo feminino. Afinal, quando James Franco “posou” para a capa da Flaunt em um absoluto close up das nádegas, não houve tanta repercussão negativa em torno de tal imagem. Mas, claro, ele é um homem brincalhão e o resultado foi visto como “divertido” e típico de um “ator irreverente”.

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Uma coisa é inegável: o corpo perfeitamente esculpido em academia – tanto o do homem quanto o da mulher – vem sendo idolatrado desde nos anos 1980 em uma epidemia social que precisa ser quebrada para abrir espaço à diversidade física e à imagem positiva de gordos, magros, altos, baixos etc. Pegue, por exemplo, a recente lista de homens mais sexys do mundo divulgada anualmente pela People. Em primeiro lugar, o australiano Chris Hemsworth, famoso por viver o deus Thor nos cinemas, com músculos e braços gigantescos. Em segundo, Idris Elba, com o mesmo típico físico de Chris, mas com o diferencial de ter uma pele negra. E o mais curioso é que, em terceiro lugar, vem Chris Pratt, que só assumiu tal silhueta recentemente, para fazer “Guardiões da Galáxia”. Uai, e quem achava sexy o jeito de gordinho nerd que o ator sustentava desde que surgiu em “Parks And Recreation”? Dizer que ele só é digno de entrar para uma lista de “mais sensuais” depois que perdeu a barriguinha de chope é assumir que todos os seres humanos se atraem pelo mesmo tipo de pessoa e a gente sabe que não é bem assim que a banda toca.

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Porque, queridinhos, dizer que existe um “corpo perfeito” é a balela mais furada de todas. HT desafia qualquer pessoa a sair pelas ruas perguntando”O corpo de quem você gostaria de ter?” e achar respostas idênticas. Talvez a melhor ilustração para tal fato seja a campanha que a Victoria’s Secret tentou emplacar recentemente, declarando que tal “corpo perfeito” era o de suas angels, todas magérrimas com barrigas chapadas e photoshop saltando aos olhos. A revolta online foi tanta que, além de uma campanha-resposta, a grife se viu obrigada a fazer um vídeo estrelado por Sara Sampaio dizendo que “reconhecer seu próprio corpo é fundamental para uma boa autoestima”.

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Talvez a revolta com a exposição do corpo venha da própria insegurança que algumas pessoas ainda mantêm em relação a si próprias; e, talvez, a chave para isso esteja na repetição de padrões de beleza que a mídia cisma em eleger como unânimes quando, na verdade, existe uma representatividade quantitativa muito baixa de tais modelos entre as grandes massas. Ou, ainda, a mania de apontar defeitos no corpo alheio e de julgar como pervertido qualquer tipo de nudez – seja a de Kim Kardashian, a de toplessaços ou a de pool parties nudistas – esteja naquilo que Michel Foucault já dizia em livros como “A História da Sexualidade” e “Vigiar e Punir” (1975), onde o corpo é visto como sinônimo de poder, o que assusta e desperta a repressão.

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Em suma, HT concorda ipsis literis com Regina Guerreiro: amamos um terremoto fashion e, principalmente, comportamental. Que Kate Upton e Myla Dalbesio não se tornem casos isolados; que a recente campanha com modelos plus-size da Vogue também desperte o interesse em outras editoras de moda e que estas comecem a abrir espaço para a diversidade de formar e tamanhos. Um brinde aos corpos, perfeitos ou não.