“O teatro que conheci, desde a minha infância até dez anos atrás, acabou”, afirmou Fernanda Montenegro, uma das estrelas da nova novela das 9


A atriz fala sobre o papel místico em O Outro Lado do Paraíso, a carreira de 70 anos e a família

O Outro Lado Do Paraíso entra no horário nobre da rede Globo com um elenco de dar inveja a qualquer escritor e o carro chefe deste grupo é ninguém menos que Fernanda Montenegro, uma das maiores atrizes do mundo. Todos os teasers da nova novela das 9 são narradas pela rainha da interpretação, o que mostra a sua credibilidade e força junto aos brasileiros. “Não sei se o meu nome está entre os melhores do Brasil, apenas faço o que sei e se acham que sou talentosa fico muito feliz, significa que o esforço que tenho chega até o público. Mas caso não pensassem isso de mim também não importaria, porque continuaria exercendo a minha profissão de atriz. Sou uma vocacionada”, garantiu Fernanda.

Na trama de Walcyr Carrasco, Fernanda Montenegro fará uma mulher mística que vive no interior do Tocantins. A personagem Mercedes representa o lado espiritual da vasta cultura do norte do Brasil na figura de uma curandeira capaz de sanar o lado físico e espiritual. “Quero agradecer o Walcyr por confiar uma personagem tão difícil a mim, espero conseguir corresponder às expectativas que ele tem. Nesta ideia também entra o figurino, o cabelo e o jogo de cena com os colegas”, considerou. Apesar de estar à frente de um papel muito especial, o texto e o fato de estar em outra novela é o que mais seduz a atriz. “Já passei da fase de ser atraída por uma personagem. Nos setenta anos de vida pública que tenho sei que é complicado falar das minhas impressões. Quando leio o roteiro, me sinto atraída automaticamente porque amo minha profissão e gosto do que faço. Desde o princípio, já sei que é difícil encontrar qual o caminho que darei para aquele personagem e este trabalho é muitas vezes em conjunto, porque não sou a única atriz em cena, existem cerca de sessenta atores nesta novela fora toda a figuração. Ler um personagem é um atrativo, um pouco apavorante, mas sempre sedutor”, afirmou Fernanda que diz ainda sentir um frio na barriga a cada estreia.

Para ela, a arte nunca acabará porque os personagens que a mantêm viva são vocacionados para a profissão (Foto: Reprodução)

Considerando esta busca pessoal por encontrar a melhor face possível para a sua personagem, Fernanda precisou mudar o visual e pintar o cabelo de branco. “Ainda não me acostumei com a cor do meu cabelo, porque foram muitos anos pintando. No entanto, acho um visual confortável. Estou aceitando o cabelo branco, afinal, ir ao salão toda a semana era um horror, às vezes a tinta não pegava direito na raiz. Agora, esta é a minha cor natural, posso deixar crescer normalmente sem me preocupar assim como era quando pequena”, agradeceu.

Mercedes personifica o misticismo que o enredo de Walcyr Carrasco está trazendo a partir do conceito cármico. A novela prega a lei do retorno, ou seja, quando tudo o que uma pessoa faz volta para ela mesma. Podemos ver este conceito na ideia de que a vilã de Marieta Severo prega ódio e raiva e irá receber o mesmo de volta devido a ira da protagonista, interpretada por Bianca Bin. Fernanda Montenegro defendeu que todas as pessoas são espiritualizadas. “É como diz Santo Agostinho, se a pessoa duvida, ela já acredita. Sempre há a dúvida, afinal, quem não faz um pedido de socorro em um momento de desespero? Cada um vai em seu credo particular, de alguma religião ou de alguma fé individual. Até mesmo o ateu diz ‘meu deus’, não é mesmo?”, citou a atriz.

Fernanda destacou a importância de uma novela falar sobre o lado espiritual e isto se deve, principalmente, a correria do dia-a-dia com a presença da internet. A atriz se considera uma pessoa de hábitos arcaicos que pouco usa o digital. “Não tenho tempo para as redes sociais. Possuo um facebook particular, mas não cheguei ainda nesta tecnologia. Isto acontece, realmente, pela vida corrida que tenho. Prefiro dedicar o meu tempo livre aos livros, nem que seja uma página. Gosto de abrir um jornal e ler. Isto é muito arcaico atualmente. Não troco isto por ficar olhando o que as pessoas estão fazendo ou falando de mim”, contou.

Fernanda Montenegro vive uma mulher mística na nova novela das 9(Foto: Reprodução)

“Existe um desserviço a disposição do poder político, estranhamente poderoso. A amplitude dos atos políticos tem uma divulgação assustadora, com pessoas extremamente reacionárias onde só vale o conceito individual. A opinião de outra pessoa, que por acaso tenha alguma alteração do discurso, no fundo deverá ser morto. A sociedade encaretou. Todos têm direito de pensar o que quisermos, inclusive, quem é careta. O que não pode acontecer é apenas um pensamento dominar. Distinguir o outro por ser diferente é amedrontador”, criticou. A atriz se referia, principalmente, às críticas feitas à exposição Queermuseu que deveria ser aberta ao público no Museu de Arte do Rio, o MAR.

Em contrapartida, nas telinhas é possível ver discursos políticos críticos, como é o caso de A Força do Querer, de Glória Perez, que deu voz ao grupo LGBT ao falar sobre transexuais. Ao mesmo tempo, Fernanda Montenegro teve a honra de fazer um personagem que também falava sobre este universo em sua última novela, Babilônia. Na trama, fazia uma senhora que era casada com outra mulher. A cena em que as duas se beijavam foi intensamente criticada pelos espectadores. “Acho que o público tende a aceitar mais o homossexualismo nos jovens, mas foi complicado ver que duas senhorinhas de setenta e poucos anos possam ter um caso. Um simples beijo na boca ganhou uma repercussão inexplicável e assustadora, porque pensamos que o mundo está caminhando para frente. No entanto, pouco se fala do preconceito na terceira idade. Parece que até os quarenta anos ainda é suportável ver este carinho entre duas pessoas do mesmo sexo, mas depois disso já é abominável”, comparou Fernanda seu papel com o sucesso do atual personagem em A Força do Querer.

Durante a entrevista com o site HT, Fernanda Montenegro falou ainda sobre a situação do teatro atual e trouxe uma reflexão pessoal sobre o momento artístico. “Hoje, vejo que o teatro acabou. Os espetáculos que conheci, desde a minha infância até dez anos atrás, acabaram. Não há mais companhias e autores altamente representativos feitos na sua dimensão de elenco. No entanto, o período de resistência é, às vezes, mais glorioso que os próprios anos de glória. O que acontece hoje é um teatro de catacumbas, mas se é necessário fazer um monólogo ou diálogo para sobreviver, então que assim seja. É uma luta o que acontece hoje, onde cada ator tenta ir até onde pode. É uma resistência cultural de se aplaudir de pé”, agradeceu a atriz a todos os seus companheiros de profissão que seguem produzindo.

Ao se referir aos artistas, Fernanda Montenegro também cita seus filhos Fernanda e Cláudio Torres que, assim como ela e seu marido Fernando Torres, seguiram o ramo das artes. “Para um pai, ver o seu filho se sentir realizado não existe um bem maior. Eu nunca disputei o poder ou um espaço com eles, então aplaudo cada conquista. Comigo, por exemplo, foram cerca de vinte e cinco anos perambulando pelo país. Às vezes, os meus filhos iam juntos, mas não era comum. Eu e meu marido achávamos que eles veriam isto como algo negativo, porque os pais não estavam ali. Apesar do nosso trabalho nos tirar muito de casa, acabaram seguindo os meus passos. Isto significa que nós não erramos tanto”, garantiu. Os dois netos menores da atriz pretendem ser cineastas, seguindo o modelo dos mais velhos.

Fernando Torres, marido da artista, faleceu em 2008 e somente em junho de 2017 ganhou uma homenagem feita no bairro de Ipanema. “Quando passo pela praça, não consigo evitar as lágrimas nos olhos. O lugar é muito bonito e bem cuidado, sinto que os moradores gostam daquele espaço. O nome do Fernando trouxe uma ideia de um convívio sadio”, garantiu. O Largo Fernando Torres está localizado entre as ruas Almirante Saddok de Sá e Alberto de Campos. O lugar foi totalmente reformulado e, no sábado de inauguração, contou com a presença da família do ator e diretor. “Ele ainda faz parte da minha vida, todos os dias. Foram sessenta anos juntos, afinal”, afirmou.