Após o desfile da Cavalera, o turbilhão. Em manifesto, Alberto Hiar declara: “Tenho medo de morar no Brasil!”


Que ativistas do Peta, que nada! Em ato-performance, o homem por trás da grife de moda street panfleta em sua própria passarela, trazendo o debate político para a moda.

*Com Alexandre Schnabl e João Ker  

Neste primeiro dia de SPFW, a Cavalera levou a atmosfera paz & amor de Woodstock para Bali, em ponte aérea onde a fluidez substituiu a característica pegada rocker da marca – geralmente mais pesada – por uma cadência mais leve, como se uma brisa marinha houvesse impregnado seu DNA. Claro que essa onda pode ser sentida logo de cara pelo público, que se deixou levar pelo climinha gostoso, a começar pelo cenário sutil, um piso que reproduzia a textura de madeira, daquela usada na construção de cabanas de praia e que acaba ficando clarinha, sob efeito do sol e da maresia. Alberto Hiar, diretor criativo da marca, aposta agora no uso de tecidos esvoaçantes e muito jeans, um dos pontos fortes do brand. Nessa levada à beira do mar, seda e chamois tomam a dianteira, com destaque para as túnicas, xales com franjas, os robes para homens e mulheres, jaquetas e botas de cano alto para elas, mais curtas para eles. E uma deslumbrante saia longuete, daquelas que fazem valer todo um desfile.

Dessa vez, menos acessórios foram usados no styling, mas uma ampla coleção calçados compareceu na passarela, dentro do recente perfil da grife como lançadora importante nesse segmento, tendo participado de feiras e eventos do setor. A alfaiataria pontual serve como liga para os looks que se sucedem na passarela, enquanto um fabuloso vestido longo com nesgas enormes – e franjas que surgem de dentro delas – parece causar impacto profundo na plateia. Já nos prints, vale afirmar que os tecidos adamascados e as estampas de flores ou folhagens tropicais sobre fundo preto são um must nesta próxima estação. Poucas vezes o uso de colorido tão vivo em contraste com o negro da base resultou em tanta leveza, revelando que a equipe de criação possivelmente tem andado inebriada pelo Nirvana resultante dessa viagem que vai da lisergia woodstockiana à malemolência do litoral na Indonésia.

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Fotos: Agência Fotosite (Divulgação)

Mas, mesmo com um desfile bacana, a marca não se limitou a marcar presença no evento apenas através da coleção. Como rock é atitude, a atitude emana pelos seus poros e Alberto Hiar sempre tem algo a dizer, dessa vez ele organizou um manifesto político, apresentado ao público logo após à fila final das modelos, sem que houvesse tempo para a plateia sair da sala de desfiles. Tudo a ver. Depois de levar os fashionistas ao Minhocão, às margens do Rio Tietê e a um ferro velho, Hiar decidiu lançar este ano o manifesto #AquiJaz.

Vindo de uma família libanesa e crescido no Distrito do Ipiranga, em São Paulo, o “Turco Louco” – como ficou conhecido na época em que era político – explica as ideias por trás do Manifesto ainda no backstage do show, momentos antes de tudo começar. “A primeira coisa que quero deixar claro é que esse ato não tem nada a ver com a coleção que a gente acabou de lançar. A coleção foi pensada há mais de seis meses, o manifesto é uma vontade minha de anos.” Os motivos por trás dessa vontade parecem um tanto idealistas, mas se aplicam à grande parte dos brasileiros que não vive isolada em uma bolha. “Eu sinto medo de morar no Brasil. E não é só em São Paulo ou no Rio de Janeiro, é no país inteiro onde as pessoas têm que sair usando um carro blindado para se proteger”, explica o designer e empresário. “Eu não quero viver com pavor de morrer, preso em uma cápsula. E não sou só eu: todos estão com medo”, completa.

Alberto é um cara que chegou à  indústria da moda com vontade de causar a diferença e sua abordagem até pode ser considerada como atrevida. A Cavalera nasceu após Hiar ter sentido um gap no mercado. Pegou sua experiência em comércio, adquirida através de anos vividos como ambulante e vendedor de feira, e preencheu esse hiato com o próprio empreendimento. Hoje, a filosofia por trás de sua marca é vestida por milhares de jovens e adultos pelo país afora. E, se depender dele, o mesmo acontecerá com seu ato político desta noite passada: “Manifesto não tem dono. Eu comecei isso aqui, mas cada um pode pegar a sua própria cruz e enterrar com aquilo que o incomoda, o chateia”, ele afirma, se referindo às cruzes carregadas pelos modelos após o término do desfile, cada uma com várias questões referentes àquilo que precisa mudar no país, escritas manualmente com uma espontaneidade de povo que sai às ruas.  Ele mesmo, à frente do grupo, com a sua dizendo “impunidade”.

Em sua via crucis pessoal, o empresário lança uma cruzada contra um dos maiores males que afligem o Brasil “Impunidade, justiça, leis que não são executadas. Gente que faz o que quer sem pagar o preço depois. Pessoas que tiram a vida de inocentes e saem impunes. Isso tem que parar. Por maior ou menor que seja a infração, você tem que arcar com suas consequências. Eu tive um irmão que foi assassinado e não aconteceu nada com quem cometeu o crime”, comenta o diretor de criação. Ele se refere ao assassinato de Cláudio Hanna Hayar, um de seus oito irmãos, morto aos 40 anos no escritório onde trabalhava. Dois homens envolvidos no crime – incluindo o atirador – foram presos, mas o mandante do homicídio continua solto. Um daqueles absurdos que faz com que queiramos nos mudar para longe do Brasil, nem que seja para o Zimbábue.

Desabafo sob a forma de performance em sintonia exata com o momento do país e perfeito para acontecer em um evento de moda, que muitos ainda acreditam tratar-se de mundinho à parte, como se a vida deixasse de existir só porque são apresentadas coleções de roupas sob verniz estético. Além das cruzes-palanque, no Parque Cândido Portinari, muitas outras já devem começar a pipocar na internet, já que, na saída, o público recebia seu próprio kit-cruz para empunhar sua própria mensagem. A ideia de Alberto soa exata em época de escapismos como a Copa do Mundo, quando, no afã de se tornar hexa campeão, os brasileiros mais uma vez podem deixar de fazer um gol de placa, se esquecendo daquilo que é mais relevante. É fundamental que essa cruz não vire somente uma hashtag cool no Instagram por gente mais preocupada em fazer um selfie, do mesmo modo que aconteceu com as manifestações de junho do ano passado. Deus ouça Alberto!

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