Lorna Washington ganha documentário e conversa com o site HT: “O machismo mata até o homem que prefere ser mulher”


Artista de 54 anos ainda cutucou artistas gays que não apoiam a causa: “Muitos querem seus direitos, mas não lutam por eles. Exemplo disso é o humorista Paulo Gustavo, que fala mal da Parada Gay, que é um grande ato político e dá visibilidade ao grupo, mas na hora de casar, que foi um direito adquirido nosso, ele quer”

Uma história de luta, militância, superação e, claro, muita irreverência! Assim ficou definido o documentário “Lorna Washington – Sobrevivendo a Supostas Perdas”, que conta a trajetória do artista Celso Maciel, percursor transformista que parou a cena gay carioca na década de 80 e 90 e, hoje, após alguns problemas de saúde, desceu do salto, mas nunca perdeu o rebolado e se mantém ativo e cheio de personalidade – dentro e fora dos palcos. A produção, que tem a assinatura dos estreantes diretores Rian Córdova e Leonardo Menezes, inaugurou na sexta-feira (08/07) o Rio Festival de Gênero & Sexualidade no Cinema, no antigo Cine Odeon, na Cinelândia. Em um papo exclusivíssimo com o HT, Lorna e Rian adiantaram alguns detalhes da cinebiografia e ainda soltaram o verbo sobre assuntos polêmicos como HIV, homofobia e o deputado Jair Bolsonaro.

Lorna Washington (Foto: Divulgação)

Lorna Washington (Foto: Divulgação)

Segundo Rian, além de contar a marcante história de vida da Drag Queen, o documentário ainda costura o inicio da consciência homossexual no Rio, apresentando depoimentos de ícones de peso como Rogéria, Milton Cunha e Isabelita dos Patins. “Há quatro anos começamos a acompanhar o trabalho dela. Eu a conheci no Cabaré das Rosas, na Gamboa, em uma época em que essas casas estavam começando a ganhar mais destaque novamente na cidade. E, como também canto, nos aproximamos muito. A partir daí, surgiu esse interesse pela história de Lorna”, relembrou. “O filme traz um panorama do início da cena gay do Rio também, como a Galeria Alaska, passando pela boate Incontrus, até chegar na 1140 e Le Boy”, disse.

Diferentemente da linguagem tradicional dos documentários, a narrativa é apresentada de forma clipada e com textos autorais. “No filme, a gente pega momentos muitos específicos da vida de Lorna. É uma produção que não se arrasta tanto. Apostamos em uma linguagem clipada e ágil. No decorrer, mostramos essa virada de uma artista, que teve o auge durante os anos 80 e 90, até o ponto em que os shows de transformistas caem e os DJs tomam conta do pedaço. É nesse momento em que a Lorna começa a se apresentar em saunas, boates de fama duvidosa até chegar ao ponto em que ela fica internada no hospital, depois de passar por quatro cirurgias para não perder uma perna, decorrente da diabetes”, contou. “A fase mais complicada foi o momento em que ela ficou internada. Nós estávamos lá, acompanhando tudo. A Lorna tem um temperamento muito forte, e estar presenciando essa fase não foi tão fácil. Mas, graças a Deus, deu tudo certo, e hoje estamos aqui todos juntos para contar essa história”, disse Rian.

A artista no palco (Foto: Divulgação)

A artista no palco (Foto: Divulgação)

Mas afinal, quem é Lorna Washington? A personagem ícone do transformismo brasileiro nasceu através do artista Celso Maciel, no ano de 1979, quando ainda tinha 17 anos, dando pinta nas pistas da Galeria Alaska, em Copacabana. Enquanto dublava o hit “Você Não Soube Me Amar”, da Blitz, ele não imaginava que estava virando uma drag queen – ou transformista, como se dizia naquele tempo. “A gente dublava de brincadeira, e eu era conhecida como a bicha do leque. Porque eu era gorda, peluda e esquisita. Eu sentia muito calor”, brincou Lorna. “Depois comecei a fazer shows na casa de amigos, e Lorna nasceu de vez. Meu primeiro show foi em uma boate chamada Katacombi, que tinha apresentação de passistas e tudo mais. Até a Alcione já cantou lá”, relembra ela, que observa sua vida retratada nas telonas como um alerta contra a homofobia.

“Estou muto feliz por receber esta homenagem ainda em vida. Porque depois que eu morrer eu só quero reza. Depois de morta eu não quero saber de filme, nome de rua, nome de boate…”, contou, aos risos. “É um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo, sabe? Alegria por ter sido escolhida no meio de tantos artistas para ser homenageada nesse documentário. No entanto, triste por viver em um país que tantos homossexuais e transexuais morrem vítimas de homofobia e intolerância”, ponderou.

Recentemente, tivemos casos graves de homofobia mundo afora. O massacre da boate Pulse, em Orlando, nos Estados Unidos, e a morte do estudante da UFRJ Diego Vieira Machado, de 30 anos, são exemplos de que a intolerância contra o grupo LGBT tem crescido. Para Lorna, isso se deve à proporção de como as pessoas têm se mostrado. “O que acontece é que antigamente nós éramos uma sociedade invisível. A partir do momento que você começa a se mostrar o preconceito aflora. As pessoas ficam mais irritadas, porque não querem que nós frequentemos os mesmos lugares. Antigamente, no colégio só tinha uma bicha que era massacrada. Hoje são quinhentas mil bichinhas na escola. A heterossexualidade é tao frágil que se sente uma ilha no meio do oceano. Enquanto nós também nos sentimos assim. As saunas estão cheias de rapazes musculosos, que não se julgam gays. A bicha, na verdade, sou eu. De toda forma, todos temos que nos respeitar”, disse. “Se você reparar, as mortas são as travestis, as trans e bichas afetadas. É o machismo que quer matar até aquele homem que prefere ser mulher”, avaliou Lorna.

Já o diretor Rian, conta que sua luta é através de seu arte. “O filme toca nesse mesmo assunto de transfobia. Eu tenho grandes referências do que é o bulliyng. Eu perdi grandes amigos. Assim como tenho amigos que foram vítimas de homofobia. É importante tocar nesses assuntos para tonarmos visível todas as pessoas que passam como invisíveis. A minha militância é dentro do audiovisual”, revelou.

Lorna e seu famoso leque (Foto: Divulgação)

Lorna e seu famoso leque (Foto: Divulgação)

A personagem, batizada em homenagem a uma amiga negra americana, é inspirada nas grandes divas da música. Durante os seus shows, Lorna não se limita a apenas dublar grandes artistas – como a maioria de suas colegas. Além de soltar o gogó, a musa ainda dá diversos pitacos políticos e sociais durante suas apresentações. Questionada sobre a bancada evangélica e de extrema-direita, lê-se Marco Feliciano e Jair Bolsonaro, ela foi taxativa: “Eu acredito que, infelizmente, os fascistas nascem nessas turbulências. São pessoas oportunistas que, juntamente ao (Eduardo) Cunha, querem fazer uma Babel no Brasil. Nós estamos muito mal representados, mas a culpa também é nossa. Porque é a gente que vota”, alertou. “Observo que o maior inimigo do negro é o negro, do gay é o gay, da mulher é a mulher… a gente mesmo não se apoia dentro de nossas classes. É um desrespeito tremendo”, avaliou ela.

Já o diretor Rian Córdova destacou o cultivo do ódio que esses políticos têm trazido para a sociedade brasileira. “Eu vejo que eles defendem uma agenda retrógrada e agressiva. Muitas pessoas não têm referências sobre a violência que os homossexuais passam. Eles não perpetuam o respeito ao próximo. Em outros países quando tem Parada Gay todos fazem adesão à bandeira LGBT. Enquanto aqui, vivemos esse clima de intolerância”, comentou. “A gente faz um filme para festejar com essas pessoas que não são vistas. É um protesto mesmo: só existe quem é visto. Pessoas como Bolsonaro e Feliciano querem que as pessoas que, supostamente, ameaçam a família tradicional brasileira não existam. Mas nós estamos aqui para combater isso com o nosso manifesto”, contou Rian.

Questionada sobre o cenário político, Lorna garantiu que nunca foi uma admiradora da presidente afastada Dilma Rousseff, mas, no entanto, é contra o governo de Michel Temer. “Ruim com ela, pior sem ela. Tiraram a Dilma para colocar um muito pior. Eu nunca fui a favor do governo dela, mas ainda existia democracia neste país”, ponderou ela, que comentou a representatividade da bancada LGBT. “Se hoje nós somos organizados, devemos ao Lula. Porque foi ele que abriu nossos olhos de que tínhamos que nos reunir e criar um movimento forte e único para lutar sobre nossos direitos. Muitos querem seus direitos, mas não lutam por eles. Exemplo disso é o humorista Paulo Gustavo, que fala mal da Parada Gay, que é um grande ato político e dá visibilidade ao grupo, mas na hora de casar, que foi um direito adquirido nosso, ele quer”, polemizou.

Ainda assim, como muita gente sabe, Lorna é grande militante sobre a prevenção do HIV. Apesar das grandes campanhas feitas durante as últimas décadas pelo governo, os casos de jovens contaminados pelo HIV tem aumentado – e muito. “Eu sou da época em que não existiam nenhum desses grupos. Acho que os casos aumentaram porque hoje o doente de AIDS tem uma qualidade de vida maior por causa do avanço dos remédios. Essa juventude não vê o HIV como antigamente. Eles não viram o Cazuza definhando na capa da ‘Veja’. Os remédios eram caríssimos e meio que no contrabando. As pessoas morriam nos hospitais. Hoje, aqueles que sabem que são HIV positivo só procuram ajuda quando estão à beira da morte. Eu acho que quanto mais cedo descobrir o diagnóstico melhor. Não pode ter medo de saber. Não teve medo de transar sem camisinha… Outro grande inimigo da saúde é o amor. As pessoas quando amam acham que são imunes à AIDS. Tem que usar camisinha sempre. As pessoas precisam se amar e se respeitar antes de tudo”, disse ela que ainda comentou sobre o grupo do Carimbo – pessoas que disseminam o vírus do HIV de propósito. “O Carimbo é uma ignorância e deveria ser crime. É falta de amor pelo ser humano”.

Lorna em seu show com o auxílio de um andador (Foto: Divulgação)

Lorna em seu show com o auxílio de um andador (Foto: Divulgação)

Voltando à produção cinematográfica, o documentário transita entre momentos bem específicos da vida da transformista. Em 2005, Lorna Washington desceu do salto. Diabética, por pouco não teve o pé amputado. Hoje, anda de bengala. No palco não precisa dela, mas usa sandália e uma meia especial, e evita maiores estripulias. Mas não perdeu a pose. “Saio vestida de mulher para fazer algo, ao meu ver, nobre. Sou uma artista e tenho muito respeito pelo que faço. Não pinto minha cara para fazer uma coisa qualquer. A vida me ensinou muito. Há uns dez anos anos eu tive um problema no pé: fui andar pelas ruas de Nova York de sandália sem meia e sem proteção em um frio danado. Com isso surgiu uma bolha enorme no meu pé que não curou. Daí instalou-se uma bactéria e quiseram amputar minha perna. Mas uma enfermeira descobriu um tratamento e me livrou dessa.”, explicou ela.

Apesar de todos os dramas que uma rainha precisa passar, Lorna se mantem nos palcos levando alegrias para seu público. “A minha mensagem é que você não pode desistir nunca. Eu detesto quem se coloca para baixo. Eu me recuso a ser triste. Mesmo com meus problemas eu faço meu show sentadinha, igual ao sofá da Hebe Camargo. Eu nunca dancei, nem fiz muitas performances exageradas no palco. O meu trabalho é o humor. E isso, ninguém vai tirar de mim”, finalizou.