Fabiane Pereira entrevista Julia Wähmann: memórias, luto, Pina e um futuro brilhante na literatura


A autora está lançando “Cravos”, que retrata uma geração e um período da vida de qualquer pessoa que está beirando os trinta ou já tenha sido agraciada por Balzac. Aquele turbilhão de emoções inexplicáveis que o tempo trata de amenizar. Sentir saudade é ter passado e isso é bom. Mas como escreveu a autora, “é reconfortante poder confiar em alguma constância na vida”. Vem ler o papo!

*Por Fabiane Pereira

“Cravos” (editora Record) é o nome do ótimo romance de estreia da escritora carioca Julia Wähmann, que é formada em design gráfico e começou a se aventurar na escrita há dez anos. Conheci Julia por intermédio de vários amigos em comum – a Zona Sul carioca é uma província – e sempre soube do seu talento para a escrita. Esta virtude fica clara em seu terceiro livro (em 2015, a escritora publicou dois independentes: “Diário de Moscou” e “André quer transar”) que será lançado hoje, às 19h, na Livraria da Travessa, em Ipanema.

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(Foto: Isabel De Nonno)

Endereçado a um interlocutor que marca a vida da protagonista com a mesma intensidade que a dança –  “Em uma certa época eu passava mais tempo na academia do que em casa”, admite Julia – “Cravos” é feito de encontros e desencontros – talvez porque o primeiro contato da escritora com a poesia tenha vindo de Vinícius. “Meu primeiro contato com a poesia veio do Vinicius de Moraes, provavelmente através da música, mas já não me lembro exatamente quando. O certo é que mais tarde, quando o hábito de leitura se tornou mais constante, voltei ao Vinicius e parti para outros poetas”, explica.

Em um dos trechos do livro, Julia escreve que “não é simples encontrar lugar para existências tão grandes” e a partir deste momento já não sei mais quem é a leitora (aka, eu) quem é a protagonista. Mas é Manoela Sawitzki, autora que assina a orelha do livro, que melhor consegue explicar “Cravos”: “A experiência da leitura aproxima-se à de um balé do qual se faz parte como espectador bailarino, alternando papéis e deixando-se conduzir pela força incomum que impulsiona a escrita”.

Digo, sem receio de parecer exagerada, que “Cravos” retrata uma geração e um período da vida de qualquer pessoa que está beirando os trinta ou já tenha sido agraciada por Balzac. Aquele turbilhão de emoções inexplicáveis que o tempo trata de amenizar. Sentir saudade é ter passado e isso é bom. Mas como escreveu a autora, “é reconfortante poder confiar em alguma constância na vida”.

FP: Quando a poesia entrou na sua vida pessoal e profissionalmente? E seu fascínio pela dança, surgiu quando?
JW: Meu primeiro contato com a poesia veio do Vinicius de Moraes, provavelmente através da música, mas já não me lembro exatamente quando. O certo é que mais tarde, quando o hábito de leitura se tornou mais constante, voltei ao Vinicius e parti para outros poetas. Fui editora por mais de 4 anos, mas nunca trabalhei direta ou profissionalmente com poesia, minha relação é puramente de leitora e admiradora.
A chegada da dança é bem clichê também: comecei a fazer aulas de balé aos 5 anos, e daí fui fazer jazz e outras modalidades, até chegar na dança contemporânea. Em uma certa época eu passava mais tempo na academia que em casa. A dança entrou e ficou. Comecei a assistir alguns espetáculos de balé clássico com a minha avó no Teatro Municipal, mas quando vi o Grupo Corpo – também com ela – pela primeira vez, alguma coisa mudou substancialmente, como se de repente eu tivesse entendido que “humm, pode ser assim também”. Eu devia ter uns 10 anos. O Corpo certamente foi o meu Vinicius da dança. E continuo amando os dois.

FP: “Cravos”, seu romance de estreia, fala, entre outras coisas, sobre saudade. Quais  saudades (fora as já narradas no livro) são suas molas propulsoras para realização de seus objetivos?
JW: Sempre gostei de saudade e memória na literatura, mas na vida prática acho que elas impulsionam muito pouco. No caso específico do livro, mais que a saudade, há um luto, e um esforço em vão para extrair do passado alguma coisa para adiante. Acho que os grandes acontecimentos – no sentido do impacto que têm sobre nós, para o bem ou para o mal, e eles podem ser um emprego novo, uma paixão por uma pessoa ou um animal de estimação – é que impulsionam verdadeiramente, e o tamanho deles é cada um que dimensiona.

FP: Conte pra gente sobre o processo de criação de “Cravos” e como surgiu esta união: dança e literatura.
JW: O “Cravos” é a combinação de  textos que exercitei ao longo de anos num blog junto a uma pesquisa sobre Pina Bausch para uma pós-graduação em Letras na PUC-Rio. Para o curso de especialização, reuni uma bibliografia sobre dança contemporânea, alguma coisa sobre artes cênicas e performance. Na ocasião, o meu orientador tentou me convencer a estender a pesquisa para um mestrado, mas logo depois de concluído o curso embarquei de férias para a Alemanha, onde assisti duas peças da Pina. Ali comecei a ter uma ideia mais sólida do que veio a ser o livro, comecei a enxergar possíveis pontos de contato entre toda a experiência da viagem e das coreografias com aqueles outros esboços que eu já tinha de uma história de amor malograda. A partir do momento em que essas relações se estabeleceram, teci uma colagem de cenas para compor a narrativa, que é também o que se vê nos espetáculos da Tanztheater, da Pina – ou no cinema –, uma sucessão de cenas que são editadas pelas memórias. Fiquei mais interessada, portanto, em colocar os estudos e as minhas observações numa ficção que numa pesquisa acadêmica.

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FP: Sua escrita, a narrativa de “Cravos”, é autobiográfica até que ponto? (referências, passagens, personagens…)
JW: Até o ponto que o leitor achar que é!

FP: Em tempos de cólera, como o que estamos vivendo, você ainda “espera em vão que máscaras de oxigênio caiam de algum lugar” ou já buscou outra(s) saída(s)?
JW: Acredito, sim, que as máscaras de oxigênio possam aparecer, ocorre que às vezes você está olhando pro lado errado e elas passam batidas. Mas acredito mais na capacidade de fabricar os seus aparatos de segurança e recorrer a eles em caso de emergência.

FP: Li, recentemente, uma frase (não me recordo onde nem qual a sua autoria) que já citei nesta coluna quando entrevistei Letícia Novaes: “O mundo está muito louco por isso preciso manter a sobriedade”. Seu livro fala, em algumas passagens, sobre a vontade de manter-se sóbria em momentos inebriantes. Por quê?
JW: Para a narradora, a sobriedade é o que a permitirá contar sua história, que é toda feita de lembranças. Para escrever sobre coisas tão efêmeras como cenas de dança, também é preciso recorrer aos registros da memória (exceto quando se pode recorrer a um vídeo). É claro que essas imagens que ficam jamais serão reescritas de forma exata e precisa, porque são o ponto de vista de uma pessoa diante de um objeto de interpretações diversas. A escolha pela sobriedade em momentos diferentes se faz por essa tentativa de não se esquecer.

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FP: “Calculo, em retrocesso, anos de insistências para as quais eu disse não.” Como a escrita te ajuda a entender suas frustrações mais intrínsecas?
JW: Não necessariamente ajuda a entender, mas é uma possibilidade a mais de exorcizar certos demônios. Na prática, acho que a leitura até ajuda mais, porque ao escrever é preciso estar atento a muitas coisas, muitos detalhes. É preciso um certo distanciamento, um olhar crítico em alguns momentos, para avaliar, reescrever, cortar etc. Não que a leitura não exija alguns desses elementos, mas ela pode se dar de forma bem menos rígida, e a empatia que certas histórias e personagens causam são muito “aplicáveis” na vida. Além disso, a leitura é muito surpreendente, porque você não sabe o que vem pela frente, e muitas vezes ela é desconcertante e atua em camadas muito íntimas. Recorro muito a personagens e situações da literatura quando converso com minha analista, por exemplo, muitas vezes um texto literário é revelador.

FP: Em uma entrevista recente, você afirmou que a editora Vivian Wyler disse encontrar um pouco de Miranda July, Paloma Vidal e Ana C. no seu texto. Toda escrita é referencial, de algum modo. Quais escritoras da sua geração inspiram você?
JW: Muitas inspiram mas de maneira que ainda será depurada. Gosto muito do trabalho da Clara Drummond, da Vanessa Bárbara, da Alice Sant’anna, da Bruna Beber, da Guadalupe Nettel (autora mexicana)… Poderia listar ainda muitas outras, mas como os textos delas influenciarão diretamente o meu é difícil dizer. As referências que ficam mais visíveis neste primeiro romance são as de leituras anteriores, que já processei de alguma forma. Tendo a concordar com a Vivian quando ela fala da Ana Cristina César, da Miranda July e da Paloma Vidal, que das três é a mais próxima em termos de idade, temos uma diferença pequena.

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FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela nossa sociedade a uma mulher (seja ela escritora ou não)? E de que maneira você acha que se pode mudar esta conjuntura?
JW: São tantas, eu não saberia nem por onde começar. Essa nova onda de feminismo está cumprindo, mais uma vez, um papel crucial, e noto uma adesão que começa cada vez mais cedo, o que dá um ânimo para o que está por vir. Os movimentos Primeiro Assédio ou Meu Amigo Secreto, por exemplo, detonaram uma série de conversas e diálogos importantes e necessários, abriram espaço para um debate e uma revisão de uma série de pontos que precisam mudar. São algumas das máscaras de oxigênio de que falei acima, um movimento que vai agregando pessoas e agindo também como uma espécie de grande grupo de apoio, em que a escuta é fundamental para uma nova conscientização.

FP: Quais conselhos você daria a alguém que, como você, deseja viver da própria escrita?
JW: São poucos os autores que vivem de sua própria escrita, não só no Brasil, e eu dificilmente viverei dela algum dia. Grande parte dos escritores atuam em outros ofícios que os sustentam, muitos ligados ao universo da literatura mesmo, que engloba editoras, mídias, universidades… Viver de atividades ligadas à cultura e às artes, sobretudo em nosso país, é lidar o tempo todo com a instabilidade, com a falta de continuidade em programas de fomento etc., e quando se opta por esses caminhos é preciso saber que são, possivelmente, mais árduos que os de atividades vistas como mais tradicionais.

FP: Pra finalizar, você também é editora de livros. Pode dar algumas dicas para que novos autores tenham mais chances de “encantar” um editor e consequentemente ser publicado por uma editora?
JW: (Na verdade não sou mais, estou fora do mercado há cerca de um ano. Continuo envolvida com atividades relacionadas à literatura, mas não edito livros há tempos.) Não há uma cartilha, o mercado editorial é muito particular, em diversos aspectos, assim como o ofício do escritor. Minha formação é em design gráfico, trabalhei anos no mercado de moda e trabalhei mais de quatro anos como editora muito em função da relação que estabeleci com a leitura, e também porque assumi o risco de escrever e mostrar meus textos para alguns conhecidos (que se tornaram grandes amigos) do meio. Falo isso apenas como um exemplo de muitas trajetórias possíveis. Não há um diploma que assegure garantias, nosso trabalho não exige habilidades específicas, mas antes um comprometimento e uma dedicação que podem surgir como um hobby, e que sempre ganham corpo porque, como escritor, a gente não para de ler e de se alimentar disso.
*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.