Fabiane Pereira entrevista Alice Sant’Anna em sua coluna semanal dedicada às mulheres na literatura: As delicadezas e contemporaneidades da poesia dessa carioca


Na contramão da correria que nos tem sido imposta sei lá por quem – pior, sabe-se lá por que – esta coluna convida você a contemplar Alice Sant’Anna, afinal algumas coisas merecem ser lidas vagarosamente não porque sejam lentas mas sim porque devagar deveria ser o tempo normal das coisas

*Por Fabiane Pereira

A carioca Alice Sant’Anna apesar de superjovem já é expoente de uma geração de poetas que tem se destacado nos últimos anos. Seu recém publicado terceiro livro, “Pé do Ouvido” (Companhia das Letras) é singeleza pura. A começar pelo título que já nos remete a uma situação íntima: falar baixinho, ao pé do ouvido, quase murmurando. Em um momento em que ouve-se gritos por todos os lados – nas redes sociais, no tráfego congestionado das grandes cidades, nas relações mais íntimas, etc – o silêncio se impõe necessário.

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“Pé do Ouvido” traz dois longos poemas: o primeiro maior que o segundo. A ousadia de Alice mexeu comigo como leitora e apreciadora da linguagem, do gênero literário poesia. Talvez porque a escrita contemporânea de Alice também exponha as dificuldades da nossa geração. Em um de seus versos, ela afirma que “não dá para fotografar a lua / não com a câmera do celular”. Isso já denota algumas impossibilidades modernas como se concentrar na contemplação de alguma coisa. “É como se contemplar, sozinho, não pudesse dar conta do tamanho da lua, do quão especial aquilo era. Só faria sentido mostrando a foto da câmera do celular”, explica.

Na contramão da correria que nos tem sido imposta sei lá por quem – pior, sabe-se lá por quê – esta coluna convida você a contemplar Alice Sant’Anna, afinal algumas coisas merecem ser lidas vagarosamente não porque sejam lentas mas sim porque devagar deveria ser o tempo normal das coisas.

FP: Quando a poesia entrou na sua vida pessoal e profissionalmente?
AS: Entrou aos 15 anos, quando li pela primeira vez Ana Cristina Cesar, e logo em seguida fui fazer um intercâmbio na Nova Zelândia, numa cidade tão pequena que não tinha nem cinema. Levei na mala uma antologia de poetas brasileiros chamada “Boa companhia” (o nome não podia ser mais apropriado). Foi lá que comecei a escrever.

FP: Assim como Heloisa Buarque de Hollanda (ensaísta que assina o prefácio de “Rabo de Baleia”, segundo livro de Alice), eu também sempre tive curiosidade sobre os rituais de criação dos poetas. Conta pra gente como é seu processo criativo.
AS: Eu não tenho bem um processo. Não tenho disciplina, não escrevo todo dia, nem toda semana, nem todo mês. Cada livro tem um caminho muito diferente. O primeiro foi todo escrito no ônibus, 569 e 570, a caminho do trabalho. O segundo foi depois de um intercâmbio durante a faculdade, aos 21. E o terceiro, esse “Pé do ouvido”, foi escrito em um mês, contado, durante uma pesquisa sobre cultura japonesa, num mestrado-sanduíche que fiz na Universidade Brown, nos Estados Unidos.

FP: No recém lançado “Pé de Ouvido” (editora Companhia das Letras), você opta por um longo poema narrativo em que a protagonista é jovem como você. Quais as semelhanças entre você e a personagem de seu livro?
AS: A semelhança é total. Eu estava escrevendo sobre a viagem, sobre a pesquisa a respeito da cultura japonesa (quimono, cerimônia do chá, estações do ano e, claro, poesia), sobre as pessoas que eu conhecia lá, sobre as árvores no outono, sobre o que faltava comprar no mercado, coisas muito banais e muito grandes ao mesmo tempo.

FP: O que tem de autobiográfico na sua poesia?
AS: Um monte. O que a gente vive dá muito pano pra manga. É claro que isso é trabalhado, pensado. Nenhuma experiência é transposta para o papel de um jeito bruto, literal, porque você precisa escolher o que escrever, como escrever. A viagem para essa pequena cidade da Nova Inglaterra existiu, e as leituras sobre o Japão também. Mesmo que o “eu” ou o “ela” no poema não necessariamente sejam eu, ainda assim tudo o que está neste livro partiu de uma experiência, minha ou de outra pessoa com quem conversei.

FP: Um dos versos de “Pé de Ouvido” afirma que “não dá para fotografar a lua / não com a câmera do celular”. Na sua opinião, em função do advento dos aparatos tecnológicos, as pessoas estão deixando de lado a contemplação?
AS: Acho que sim. Contemplar, nesta parte do poema, é tão crucial que é preciso tirar foto para mostrar para alguém. Como se contemplar, sozinho, não pudesse dar conta do tamanho da lua, do quão especial aquilo era. Só faria sentido mostrando a foto da câmera do celular – mas, já que a câmera não era boa o suficiente, o jeito era escrever.

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FP: Você já teve medo da poesia? Se sim, por que e como você conseguiu superar?
AS: Medo? Não, pelo contrário… A poesia de algum jeito ajuda a pensar nos medos. Não te dá uma resposta, uma solução, mas muitas vezes ajuda a organizar, a dar o tamanho, a proporção que as coisas devem ter. O medo, acho, é quando uma coisa pequena (um inseto?) ocupa espaço demais (uma casa inteira).

FP: A poesia, gênero literário que já foi renegado em outros tempos, tem tido papel de destaque nos últimos anos em vários festivais literários. A que você atribui isso?
AS: A poesia vive um momento bom à beça, muito produtivo, com uma onda de excelentes poetas (não me incluo aí) e de leitores muitos interessados (me incluo aqui), que muitas vezes não tinham o hábito e agora estão lendo poesia pela primeira vez.

FP: A poesia é capaz de sobreviver sem metáforas num mundo polarizado e conservador como este que estamos vivendo?
AS: Acho que sim. A poesia ocupa um lugar muito particular, de resistência, totalmente livre e anti-comercial.

FP: Em todo o mundo, as mulheres estão indo as ruas exigir a igualdade de gênero entre outros direitos. No Brasil, o movimento feminista cresceu muito nos últimos dois anos e tem lutado muito contra a política e os movimentos mais conservadores. Como esta luta afeta você?
AS: Afeta muito. Exemplo disso é assistir à olimpíada e ver como a mídia se preocupa em enfatizar a aparência das competidoras, o penteado, a maquiagem, ou quando dizem que o verdadeiro mérito é do homem, treinador. Ainda temos que repensar em muita coisa. As manifestações feministas, do ano passado para cá, têm sido espetaculares por mostrar a importância de estarmos juntas, discutindo, refletindo. Isso é muito poderoso. Nesse sentido, acho o máximo ver como a poesia escrita por mulheres, hoje, no Brasil, tem mostrado força total.

FP: Quais são, na sua opinião, as maiores limitações impostas pela nossa sociedade a uma mulher (seja ela poeta ou não)? E de que maneira você acha que se pode mudar esta conjuntura?
AS: Na poesia, acho que há, por parte de gente muito conservadora, uma certa expectativa do que a poeta mulher deve ser, sobre o que ela deve escrever. O maior triunfo é fazer tudo ao contrário do que esperam. Um exemplo é a Angélica Freitas, de quem sou muito fã, quando diz: “porque uma mulher boa/ é uma mulher limpa/ e se ela é uma mulher limpa/ ela é uma mulher boa”.

FP: Que conselho você daria às mulheres que querem, como você, viver de poesia?
AS: Viver de poesia não acho que seja viável, mas é possível viver de coisas ligadas à poesia: trabalhar em jornal, em editora, traduzir, revisar, pesquisar, dar aulas ou oficinas… As profissões que não são ligadas diretamente à literatura podem ser excelentes para pensar em temas novos para escrever: uma médica ou uma bióloga pode falar sobre coisas que eu não teria a menor ideia. A única coisa que não pode faltar, de jeito nenhum, é assunto.

*Fabiane Pereira é jornalista, pós graduada em “Formação do Escritor”, sócia da Valentina Comunicação — empresa voltada para criação, divulgação e produção de projetos musicais e literários — apresentadora, roteirista, produtora e programadora musical do programa de rádio Faro MPB, da Rádio MPB FM.